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Africanidade em Diálogo


MOVIMENTO NEGRO E EDUCAÇÃO

Lavini Castro*

Numa sociedade como a nossa que se constituiu pela pluralidade, urge que se corrijam diferenças históricas e tratamentos discriminatórios tradicionais decorrentes do desconhecimento ou do não reconhecimento multicultural existente no Brasil. Tais reivindicações educacionais foram propostas do Movimento Negro ao longo do século XX, interessado em eliminar discriminações, corrigir injustiças e promover a visibilidade dos elementos étnicos no sistema educacional de nosso país, objetivando combater o racismo existente na sociedade brasileira. Historicamente, o Brasil, apesar de se dizer miscigenado e composto em sua base por três etnias, acabou valorizando aspectos culturais de apenas um grupo étnico. Tal fato permite a exclusão sociocultural de determinados grupos, aqui se considera o caso específico da população negra.

O objetivo desse afrodiálogo é, com aquele sentido, trabalhar a historicização da luta do movimento negro pela implantação de uma educação antirracista, entretanto há necessidade de contextualizar a luta do movimento negro. A luz de apontamentos Petrônio Domingues, movimento negro deve ser entendido como a luta dos negros e negras do Brasil contra a discriminação racial. Luta esta que historicamente pode ser recuperada coletiva e institucionalizada, principalmente no que diz respeito a etapa dos anos 70 e 80, mas que recentemente tem se feito de forma mais democratizada sem tanto vinculo institucional.

Numa avaliação sensível, o profissional da educação que promova a aplicação da Lei 10.639/2003 ao ministrar suas aulas pode ser reconhecido como um militante da causa/luta antirracista, necessariamente sem ter passado por qualquer tipo de filiação ao Movimento Negro. Numa escuta atenta de uma entrevista de Petrônio Domingues concedida à Afrodiálogos, com mediação de Lucimar Felisberto dos Santos, na nossa Masterclass de 24 de julho de 2020, pudemos entender que podemos consider militante aquele que defende uma causa estando ou não vinculado a uma instituição, porque hoje a luta antirracista se apresenta de forma mais pulverizada.

Sendo assim podemos perceber a possibilidade do profissional da educação atuar militantemente em sua sala de aula, ao por em prática os conteúdos trazidos pela Lei 10639/2003.

Entendemos a luta do movimento negro como um processo educacional, pois a luta desse coletivo não só pôs em xeque as distorções da ideologia da democracia racial, como indagou a própria história brasileira quanto as ações do Estado no combate as desigualdades raciais enquanto politizava a ideia de raça como potência não só como uma categoria de hierarquia.

O movimento negro destacou as singularidades da raça negra, projetou a nossa identidade enquanto um atributo positivo desmistificando a ideia de inferioridade historicamente construída.

Gomes (2017) nos traz uma boa definição do Movimento negro enquanto movimento social dos grupos afro-brasileiros no combate ao racismo e toda discriminação sofrida por esse grupo. Para autora:

Entende-se como Movimento Negro as diversas formas de organização e articulação das negras e dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse perverso fenômeno na sociedade. (...). Trata-se de um movimento que não se reporta de forma romântica à relação entre negros brasileiros, à ancestralidade africana e ao continente africano da atualidade, mas reconhece os vínculos históricos, políticos e culturais dessa relação, compreendendo-a como integrante da complexa diáspora africana. Portanto, não basta apenas valorizar a presença e a participação dos negros na história, na cultura e louvar a ancestralidade negra e africana para que um coletivo seja considerado como Movimento Negro. É preciso que nas ações desse coletivo se faça presente e de forma explícita uma postura política de combate ao racismo. Postura essa que não nega os possíveis enfrentamentos no contexto de uma sociedade hierarquizada, patriarcal, capitalista, LGBTfóbica e racista. (GOMES, 2017, pág.24).

Dentro das estratégias de atuação a essência que podemos observar neste movimento sempre foi a busca pela emancipação do negro na sociedade brasileira, seja por melhores condições de vida, trabalho ou educação. A luta do Movimento Negro ao denunciar atitudes discriminatórias e desiguais em que o negro é colocado em sociedade rompia e denunciava a ideologia da democracia racial além de e apresentar um amadurecimento das lutas antirracistas no Brasil, conforme nos relatou Silva (2015, p.13).

Para Muller e Coelho (2013), em seu artigo A Lei 10.639/03 e a formação de professores: trajetória e perspectivas, apresentado pela revisa da ABPN, em 2013, o Movimento negro, desde cedo percebeu que a questão educacional era essencial para mudanças de paradigmas sociais para a população negra. Para as autoras:

Dentre todas as violências às quais a população negra tem sido submetida, a exclusão do sistema educacional é, certamente, uma das mais perniciosas formas de ferocidade. Podemos destacar dois fatores que corroboram essa afirmativa. Em primeiro lugar, o mais obvio: com menos anos de estudo, com aproveitamento insuficiente dos poucos anos passados nas escolas, a população negra tem enorme dificuldade em reverter a sua condição socioeconômica. E o segundo, consequência do primeiro, a desigualdade no sistema educacional perpetua a condição desfavorável que os negros econcontram no mercado de trabalho. Assim, as épocas se sucedem sem que o circulo vicioso possa ser rompido e uma geração possa viabilizar condições melhores para as gerações futuras gerações. (MULLER & COELHO, 2013, p.32).

Olhando por este prisma, o Movimento Negro nos trouxe a possibilidade de discutir o racismo presente na sociedade brasileira, por atuar denunciando os preconceitos sofridos pela população negra.

Ao mencionar o movimento negro enquanto ator político, Gomes (2017) enaltece a luta deste movimento em prol da superação do racismo questionando o Estado e a sociedade no seu compromisso com a problemática racial, além de auxiliar a ressignificação da categoria raça tirando dela sua interpretação universal. Paralelamente observamos a evidência da raça negra enquanto protagonista de sua histórica luta, é é dado nova visibilidade ao componente étnico-racial afro-brasileiro, pois rompe com visões negativas e naturalizadas sobre os sujeitos negros ademais passa a enxergar potência política nas relações de poder desses atores sociais em sociedade.

Nesse sentido, o movimento negro deve ser entendido como a luta dos negros e negras do Brasil contra a discriminação racial, sendo uma luta coletiva e organizada. Tal entendimento sobre o movimento negro deve ser contextualizado, pois as estratégias de luta mudam como também mudam as ações racistas em nossa sociedade.

Referências Bibliográficas

COELHO, Wilma de Nazaré Baia; Muller, Tânia Mara Pedroso. A Lei nº 10.639/03 e a formação de professores: trajetória e perspectivas. Revista da ABPN. V5, n.11 - jul. - out. 2013, p. 29-54.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Brasileiro como Ator Político. O Movimento Negro Educador. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p:21-39.

SILVA, Rosilene da Conceição. Ser Jovem Negro no Ensino Médio: Significados da implementação da Lei 10:639/03 para a construção e (re)afirmação da identidade no espaço escolar. 2015. CEFET/RJ.  

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* Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Pesquisadora do LHER/ERARIR e Co-coordenadora Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação.


Será o historiador um intelectual mediador da cultura na sociedade ocidental contemporânea?

Lucimar Felisberto dos Santos*

O caráter fluido e polissêmico dos sujeitos envolvidos na produção e na mediação cultural foi destacado por Stephane Ramos Costa, refletindo a partir da categoria intelectual mediador. A ferramenta de análise foi cunhada pelas historiadoras Ângela de Castro Gomes e Patrícia Hansen e explorada no livro Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ações políticas, publicado pela editora Civilização brasileira em 2016. No contexto de renovação de sentido do conceito de intelectual, as autoras complexificam o conteúdo do termo para que ele dê conta de abranger personagens com posições de reconhecimento diferente daqueles tradicionalmente caracterizado por modelos explicativos deterministas.

Como se dedicava a uma pesquisa sobre experiências de educação popular no Rio de Janeiro entre os anos de 1887 e 1956, Costa buscou compreender alguns dos pilares no que tange ao ativismo de movimentos sociais negros, seja através de organizações associativas, ou sujeitos responsáveis pela realização de projetos educacionais. Notoriamente, ainda que as estratégias fossem capturadas nas ações coletivas de uma determinada instituição - no caso a Escola da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos - eram projetos individuais de homens como o professor José Cláudio Nascimento, e de professores e gestores daquela instituição religiosa, que eram compartilhados por uma comunidade. Daí a historiadora defender que,

A relação da categoria cunhada pelas historiadoras está em forte diálogo com os objetos mobilizados no material dissertativo pelo fato de José Cláudio Nascimento e os gestores da Irmandade do Rosário e São Benedito. Isto é justificado pelo fato de ambos os objetos tinham o intuito de disseminar a rede de sociabilidade intelectual entre os associados a seus projetos e fazendo circular seus respectivos produtos culturais. Outrossim, as práticas de mediação cultural objetivam a construção de memória por via das instituições escolares, uma tarefa muito difícil por se tratar de uma transmissão e compartilhamento de códigos, linguagens e conhecimentos (COSTA, 2020, p. 23).

Ou seja, de acordo com a perspectiva da análise, na relação que específicos agentes desenvolvem com um público composto por seus pares, disseminar uma rede de solidariedade, construir uma memória por via das instituições escolares e transmitir e compartilhar códigos, linguagens e conhecimentos seriam práticas sociais educacionais que lhe conferiria o reconhecimento como intelectual mediador. Não era outro senão esses os papéis desempenhados pelos homens e mulheres que a historiadora encontrou na documentação utilizada para produzir sua dissertação de mestrado com o título "Patrício negros: Experiências de educação popular no Rio de Janeiro (1887-1956)", defendida no Programa de Pós-graduação de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Os patrícios negros foram definidos no trabalho de pesquisa por "individuais ou coletivos - que, apesar de terem posições políticas distintas, possuíam um o objetivo comum de uma verdadeira emancipação da população negra por meio da educação". Com esse sentido, a historiadora evidenciou projetos de homens e mulheres voltados para a produção de conhecimento ou para a produção de ideias cruzadas de interesses e sentidos de suas expectativas de mudanças da realidade social.

Os sujeitos da pesquisa, de muitas formas, distanciavam-se daqueles intelectuais que foram até mesmo considerados agentes da dominação capitalista. Analisando o assunto, também a partir do livro de Gomes e Hansen, Alex Fernandes Borges, argumentou que,

Não foi antes dos anos 1980 que o intelectual, como categoria de análise, emerge nos estudos sociais de um modo novo, integrado dentro da história cultural como relevante para se compreender o quadro geral das condições de produção político-sociais de ideias. Desde então, há um esforço de se compreender melhor essa ­ figura como elemento fundamental da mediação cultural. Embora tais esforços possam ter resultado em um conceito polissêmico, ­ fica decantado que o intelectual não pode ser entendido como o emissor supremo de conteúdos a receptores absolutamente passivos dentro de uma lógica dicotômica (2017, p. 37).

Os sujeitos da pesquisa de Stephane Ramos da Costa, portanto, enquadrar-se-iam na categoria de "Intelectual" que, de acordo com as autoras cujo ela e Borges estabelecem diálogo, pode ser de­finida como "incluindo homens e mulheres voltados para a produção de conhecimentos ou comunicação de ideias que estão, direta ou indiretamente, vinculados a uma possibilidade de intervenção sociopolítica mais ou menos de­finida no horizonte de sentido de determinada sociedade" (BORGES, 2017, p.).

Stephane Ramos da Costa ressalta a mediação de intelectuais os quais denomina "patrícios negros" que, entre as últimas décadas o século XIX e primeira metade do século XX, projetaram e construíram espaços de educação para os filhos dos portuários e trabalhadores residentes em regiões de moradias de populações negras na cidade do Rio de Janeiro. Sua dissertação está inserida em um campo de estudo que reconhece os escravizados e seus descendentes libertos e nascidos livres como sujeitos históricos. Tendência que impõe um tipo de narrativa que humaniza homens negros e mulheres negras ao evidenciar tanto o seu protagonismo histórico como a continuidade e atualidade de suas lutas contra a opressão e o racismo.

A intelectualidade de seu principal personagem, José Cláudio do Nascimento, é atestada ao demonstrar que ele compreendia os fundamentais códigos sociais dos setores dominantes. Apesar de o seu projeto educacional ter estado à margem das políticas públicas e mesmo do apoio de uma "elite negra" com maior poder aquisitivo - como foi o caso da Escola da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos -, o patrício negro foi o organizador de ao menos cinco escolas espalhadas pelo Rio de Janeiro. O sentido da sociedade que ele vivia era extremamente excludente e ações contundentes voltadas para a educação do seu público alvo eram quase inexistentes. Assim sendo, não é difícil imaginá-lo dotado de momentos de motivação, percepção, interpretação, em constante diálogo com praticamente todos os campos das chamadas ciências humanas, mediando ideais e projetos políticos, funcionando, portanto, como mediador cultural em muitos aspectos.

Importa destacar, todavia, o papel da historiadora Stephane Ramos da Costa; sua escolha de objeto de pesquisa, as categorias de analise que priorizou; o sentido que imprimiu na sua narrativa, enfim, o esforço com o qual buscou "compreender o quadro geral das condições de produção político-sociais de ideias" de um dado contexto histórico, partindo de específicas experiências. Ao dissertar sobre tais temas e problemas, buscou projetá-los para além do tempo de sua ocorrência, do mundo daqueles personagens. Utiliza as ferramentas de produção de conhecimentos de sua área, objetivando uma compreensão racional que tornasse inteligível os sentidos das lutas daqueles indivíduos. Práticas que podem, sem dúvida alguma, ser definidas como de uma intelectual mediadora. Como argumentou Alex Fernandes Borges,

O historiador poderia ser muito bem caracterizado como um sujeito produtor de conhecimento e, ao mesmo tempo, um comunicador de ideais que, por estar incrustado na tessitura sociocultural na qual produz e se produz, é um ser cruzado por interesses, carências e sentidos que permeiam a produção e divulgação dos bens culturais, catalisando e difundindo, recebendo e emitindo mensagens, sendo emissor-receptor, influenciador e influenciado, sempre considerando a maneira como seus discursos são apropriados pelo público a que se destina e, por ­ fim, reajustando suas emissões reconsiderando tanto os interesses, as carências e os projetos políticos já afetados pelo próprio discurso, ou discursos, já emitidos (2017, p.44).

Outros cientistas humanos e sociais, certamente, poderiam assim ser qualificados. Na sociedade ocidental contemporânea, personagens com posições de reconhecimento diferente daqueles tradicionalmente caracterizado por modelos explicativos deterministas são sim intelectuais mediadores que estabelecem forte diálogo entre o conhecimento produzido e aqueles homens e mulheres que se utilizam desse mesmo conhecimento para sua emancipação social. E isso tanto atuando diretamente na prática docente, como os sujeitos da pesquisa de Costa, quanto produzindo conhecimento para ser disseminado entre seus pares.

Fonte:

BORGES, Alex Fernandes. O HISTORIADOR COMO INTELECTUAL MEDIADOR DA CULTURA. In: Revista Eletrônica História em Refl exão, Dourados, MS, v. 11, n. 21, jul./dez. 2017.

file:///C:/Users/User7/AppData/Local/Temp/O_historiador_como_intelectual_mediador_da_cultura.pdf Acesso: 13/07/2020.

CASTRO GOMES, Ângela; HANSEN, Patrícia.Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ações políticas. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2016.

COSTA, Stephane Ramos da. Os patrícios negros": projetos de instrução e identidades negras no Brasil do século XX. In: Anais do 30º Seminário Nacional de História - ANPUH - 2019. https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1565803558_ARQUIVO__Patriciosnegros__projetosdeinstrucaoeidentidadesnegrasnoBrasildoseculoXX.

______________. PATRÍCIOS NEGROS: Experiências de educação popular no Rio de Janeiro (1887-1956). Dissertação, Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2020.

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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.     


As ações do Movimento Negro diante dos entraves para a Lei 10.639

Lavini Castro*

A partir das ações do Movimento Negro houve a possibilidade de se ressignificar a raça, como nos informa Nilma Lino Gomes. Para a autora tal ressignificado foi possível quando o movimento negro traz para o centro do debate o questionamento da democracia racial, evidenciando o racismo de nossa sociedade e cobrando políticas públicas para superar as desigualdades. Para essa intelectual,

"No caso do Brasil, o Movimento Negro ressignifica e politiza afirmativamente a ideia de raça, entendendo-a como potência de emancipação, e não como uma regulação conservadora; explicita como ela opera na construção de identidades étnico-raciais"(GOMES, 2017, pág 21).

A importância de se ressignificar raça se explica ao se atribuir ao grupo racial negro novo referencial de sujeito histórico na história da humanidade e, também, para que aja uma indagação a respeito da história brasileira. Nesse processo, inserir-se o negro como elemento protagonista dessa mesma história.

Quando se trata das ações do Movimento Negro no campo da educação, Gomes salienta que o movimento negro ao agir promove espaço para se construir e reconstruir novos paradigmas sobre o estar do negro em sociedade, possibilitando a reflexão de conceitos e a construção de novos conceitos e saberes sobre a realidade social brasileira, porque toda experiência social produz conhecimento. Entretanto, Gomes afirma que o conhecimento só se torna válido quando a "experiência social se torna intencional ou inteligível" (GOMES, 2017, pág. 28). Portanto, se o conhecimento é adquirido pela vivência social e são diversas essas vivências, diversos vão ser os conhecimentos.

Nesse caso, sendo o Movimento Negro um produtor de ações na sociedade, acaba sendo um meio em que se produz conhecimento sobre as causas dos negros, principalmente as causas das desigualdades sociais por conta da questão do racismo.

Acionar o Estado brasileiro provocando o reconhecimento das desigualdades pelas quais está submetida a população negra é uma das lutas do movimento negro, todavia o reconhecer já está sendo encarado, a contragosto mas está, o que falta agora é a implementação das políticas públicas em prol das negras e dos negros do Brasil. Um bom exemplo disso podemos visualizar no artigo O Movimento Negro brasileiro e a Lei 10.639/2003: da criação aos desafios para a implementação de Amilcar Araujo Pereira.

Ao longo do texto o historiador defende que desde o processo de criação da Lei 10.639/03, que torna obrigatório, no Brasil, o ensino da história e cultura da África e dos afro-brasileiros, ainda são muitos os entraves para a implementação da mesma; apresenta considerações de lideranças do movimento negro a esse respeito que ressaltam a importância da persistência da luta e mudanças estratégicas de atuação do movimento negro para continuar conduzindo a sociedade à dinâmica de entender de forma crítica o racismo.

A Lei 10.639/03 é uma forma de ação afirmativa que conduz toda a sociedade a reconhecer o valor da história e cultura africana e afro-brasileira, contudo há falhas na implementação dessa lei e avanços conservadores que criam entraves na condução das políticas públicas antirracistas ainda persistem.

Um caso que denota bem essa situação foi o fechamento da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/SEPPIR, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos em 2016 órgão que instituiu a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial recolocando a questão racial em pauta na agenda nacional.

Podemos perceber que no ano de 2003 houve boa articulação do movimento negro junto às autoridades políticas, contudo à sombra dos atravessamentos conservadores quando, principalmente, o campo de disputa era a educação, pois esta pode ser o lugar de mudanças para as futuras gerações ou manutenções de padrões hegemônicos mantenedores dos privilégios raciais.

Os desafios enxergados hoje nesse campo de disputa são muitos. Promover o monitoramento da aplicação da lei 10.639/03, conforme Pereira (2016, p. 26) nos apresenta em sua pesquisa, bem como a preocupação na formação profissional e a observação para não se permitir que a lei não seja deformada. Outra questão trazida por este autor, à luz das entrevistas de lideranças do Movimento negro é o fato de se identificar a área de aprendizagem das ciências humanas como o único campo para se aplicar o conteúdo trazido pela lei, o que restringe por demais a maneira do ensino; áreas de exatas e ciências biológicas têm muito a contribuir com esse processo. Mas, um fato que está se tornando crescente no comportamento educacional do espaço escolar é a influência hegemônica cristã como um entrave que impede o conhecimento em prol da diversidade com a desculpa de não haver interesse na interação com aquele que é diferente, tem uma história, cultura e valores diferentes pelo fato da religião "não permitir".

O cristianismo como um entrave foi argumento também elucidado na dissertação de Mestrado de Lavini Beatriz Vieira de Castro intitulada Leituras Evangélicas frente ao estudo da Cultura e História do Negro na Educação Brasileira.

Na pesquisa, Castro (2019) identifica não exatamente a existência da intolerância religiosa de forma clássica, como fundamentalista. Na verdade, o estudo de campo demonstrou que o problema para a aplicação da Lei 10.639/2003 não vem a ser de ordem exatamente proselitista ou fundamentalista naquele campo pesquisado, mas não deixou de identificar a influencia cristã como uma justificativa das ações.

A pesquisa contou com a participação das professoras e professores, que levantaram receio de conduzir suas aulas sem o conhecimento de determinados conteúdos exigidos na Lei que cria a obrigatoriedade de se ensinar o conteúdo sobre a história e a cultura africana como, por exemplo, o tema da religião afro-brasileira, o que seria resolvido com a questão da formação de professores. Contudo, tratar do tema religião afro-brasileira em sala de aula, ainda é o maior receio dos participantes que afirmam, categoricamente, não querer serem mal interpretados pelas famílias como professores doutrinadores de religião, pois o aspecto religioso é educação familiar e não ensino escolar. Todavia a mesma preocupação não ocorre quando se ensina na escola a história do cristianismo, ou politeísmos de civilizações antigas, quando se enfeita a escola para o Natal ou Páscoa, celebrações cristãs dentro do espaço escolar, mas se rejeita a todo custo tocar na questão da diversidade religiosa, ou na religiosidade africana ou afro-brasileira, ou seja é tema tabu.

Decerto, a última dificuldade apontada, que incide como um entrave à aplicação de conteúdos referentes ao universo religioso afro-brasileiro, alguns professores apontam para a repercussão desses assuntos junto as famílias e direção da escola, disso transmitem a ideia de não se tratar de um problema deles, mas uma questão que julgam ser polêmica por se tratar de religião no espaço escolar que se demonstra um espaço laico. O termo Laico é acionado quando a questão está em prol da diversidade, mas não se critica o tipo de laicidade construída diante da hegemonia cristão presente nos espaços sociais - a escola é um deles.

Ensinar sobre a conscientização da diversidade é um primeiro passo para a aplicação da lei 10.639/03 caso contrário pouco se pode mudar o quadro em que se impera uma determinada hegemonia religiosa. Nesse sentido, conforme salientou Pereira (2017, p. 27) para muitas lideranças do Movimento Negro, a luta contra o racismo no espaço escolar é parte fundamental do processo de implementação da Lei 10.639/03.

Referências Bibliográficas

CASTRO. Lavini Beatriz Vieira. Leituras Evangélicas frente ao estudo da Cultura e História do Negro na Educação Brasileira. 2019. 261f. Dissertação (Mestrado em Relações Étnico Raciais) - Programa de Pós-graduação em Relações Étnico Raciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, Rio de Janeiro, 2019

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação/ Nilma Lino Gomes. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

PEREIRA, Amilcar Araujo. O Movimento Negro Brasileiro e a Lei 10.639/2003: da criação aos desafios para a implementação. In: Revista Contemporânea de Educação, vol.12, n 23, jan/abr de 2017.

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* Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Pesquisadora do LHER/ERARIR e Co-coordenadora Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação.     



Os povos originários em luta pelo direito de terem direitos

Lucimar Felisberto dos Santos*

Se pudermos estabelecer contraponto entre os estigmas a determinar o imaginário social popularmente disseminado sobre os povos afro-pindorâmicos chegaríamos à chave: violência versus passividade. Ressaltamos, com esse sentido, em matéria publicada neste Blog, sob o título "E se os melhores não estiverem entre nós?'', a atualização do temor da elite branca diante de uma nova onda negra questionadora da sua hegemonia. Sabemos que muitos dos protocolos judiciários e policiais que agora se reivindica mudanças foram construídos com procedimentos pautados no receio de que não fosse possível a manutenção de uma suposta ordem; na crença de que os africanos e seus descendentes pertenciam a uma "classe perigosa".

Do mesmo lado, mas em outra construção imagética, os povos originários (ou pindorâmicos) foram descritos como vítimas passivas. Ainda que em alguns discursos, para atender a específicas pautas da lógica capitalista, fossem também apresentados como selvagens. Desconsiderado foi o sentido político da sua histórica luta para garantir os seus territórios, costumes e tradições. A literatura com esta tendência tradicional, entretanto, vem sendo revista. No que diz respeito seu lugar destes no pensamento social brasileiro, como analisa Tereza Almeida Cruz destacando o eurocentrismo epistêmico, a "visão está baseada em uma perspectiva evolucionista e colonialista que desconsidera outros modos de ser e viver para justificar a sua dominação como se os europeus fossem povos superiores". Fundamentalmente, os estudos recentes como o desta autora vêm destacando o protagonismo dos povos indígenas, evidenciando-os como sujeitos históricos que sempre teceram estratégias de resistências e lutas em todos os momentos históricos.

Outro desses estudos foi tema da nossa MasterClass da última sexta-feira (26/06), quando recebemos para um afrodiálogo a Dr. Ana Melo; sob o tema "O papel do Conselho Indigenista Missionário nos movimentos sociais responsáveis pelo processo que elevou os indígenas de tutelados a donos de sua própria história". Dentre as sofisticações das estratégias indígenas, a nossa historiadora convidada ressaltou uma articulação com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI); destacou a mediada relação dos movimentos por eles organizados com o catolicismo missionário ressaltando, fundamentalmente, o sentido do histórico de resistência aos instrumentos de dominação que eram trazidos na bagagem dos padres.

O CIMI foi criado em 23 de abril de 1972, no 3º Encontro de Estudos sobre a Pastoral Indígena promovido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Cinco anos antes, havia sido fundada a Fundação Nacional do Indio e, no ano seguinte, publicado o Estatuto do Índio. Em verdade, o conselho era uma das respostas possível a uma conjuntura dos anos 1960 quando a ideia de que os indivíduos são dotados de direitos políticos, sociais, econômicos e culturais era disseminada. Ana Melo argumenta que "o reconhecimento dos direitos das mulheres, dos deficientes físicos, de grupos étnicos, entre outros, deu força argumentativa para reivindicações que exigiam a garantia desses direitos, através de movimentos sociais". A perspectiva do argumento reorientou pontuais mudanças das práticas religiosas católicas nas aldeias indígenas, práticas que antes eram exclusivamente voltadas para a conversão daqueles que eram povos considerados "sem fé, sem, lei e sem rei". Ainda segundo a historiadora, "a Igreja Católica iniciou com a atuação de alguns clérigos, principalmente na região amazônica (por sua localização fronteiriça e avanço do agronegócio), uma política missionária de denúncia, tornando-se porta-voz desses povos contra a política indigenista estatal".

O associativismo dos anos 1970 mobiliza também os movimentos sociais indígenas no sentido de buscarem certa unificação na defesa de interesses coletivos. Quando, nesta conjuntura, a parte progressista da Igreja Católica cria o conselho, com 11 regionais constituídas por equipes volantes de bispos que periodicamente visitavam diversas aldeias, parece que as lideranças indígenas vislumbraram maiores possibilidades. A instituição não abria mão das missões e, partindo da ideia de promoção da justiça social e indo além da possibilidade de salvar almas, os religiosos vão dar continuidade a suas ações, mas agora alinhadas a demandas mobilizadas pela sociedade civil. Sobretudo buscando fomentar a interlocução entre indígenas e FUNAI, o CIMI cria, apóia e financia várias assembleias. Nelas eram reunidas diversas lideranças indígenas que, ao compartilharem suas experiências, na verdade, usavam a seu favor o aparato religioso.

Consolidavam as oportunidades de buscarem um alargamento de sua cidadania inclusive reivindicando a mudança do status. Tutelados pelo Estado brasileiro, os povos indígenas exigiam a observância de seus costumes e organização social próprios. A unificação das lutas estabeleceria os parâmetros necessários para que se legitimasse um lugar de fala comum que ofereceria respostas próprias. A identidade indígena, generalizada para dar consistência ao movimento, favoreceu a reivindicação do direito à demarcação de terras, ao fim do regime tutelar, ao respeito às diversidades culturais. Assim, atentos às possibilidades abertas pelo suporte do CIMI, as lideranças indígenas não deixaram de aproveitar o contexto de lutas políticas mais gerais que marcaria a década seguinte. Organizaram suas reivindicações no sentido de exigir o respeito à sua cidadania: como brasileiros e indígenas.

No processo de aproximação entre o CIMI e os movimentos indígenas, Ana Melo considera que, em um dado momento, uma tradição missionária de apoio à política estatal foi rompida publicamente e os religiosos passaram a trabalhar para ensinar os padrões não indígenas com o objetivo de que eles exercessem o seu direito de viver conforme sua cultura dentro dos seus territórios. Assim, a via parlamentar de luta parece ter sido considerada por essas lideranças. É um fato histórico a eleição da primeira e única liderança indígena eleita deputado federal, pelo PDT do Rio de Janeiro em 1982. O combativo e questionador cacique xavante Mário Juruna foi manteve-se no Congresso Nacional até 1987, período marcado por embates acalorados e ataques sofridos pela mídia e outros políticos, na tentativa de desmoralizá-lo. Mas, indubitavelmente, a sua representatividade foi fundamental para a construção do texto constitucional que seria aprovado no ano seguinte.

A partir da Carta Constitucional de 1988, e em resultado daquela mobilização da sociedade civil que incluiu também os movimentos indígenas de lutas políticas por direitos civis, os povos originários deixaram de ser considerados "relativamente incapazes". O texto da nossa Carta Constitucional consagra o direito indígena de manter terras, modo de vida e tradições. Os direitos dos índios estão expressos em capítulo específico (Título VIII, Da Ordem Social, Capítulo VIII, Dos Índios). Em tese, a legislação abandona a perspectiva assimilacionista, que entendia-os como categoria social transitória, fadada ao desaparecimento, e passa a entendê-los como povos originários, reconhecendo, assim, que foram os primeiros ocupantes do Brasil. Pontualmente, o artigo 231 traz o seguinte registro: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Os povos originários ainda estão em luta pelo direito de terem direitos. Evidencia disso é que, de acordo com uma matéria publicada pelo Jornal a Folha de São Paulo em 04 de setembro de 2018, indígenas de diversas etnias reuniram-se para somarem forças para eleger pelo menos um representante para o Congresso que tomar pose em 2019. Com 8.491 votos foi eleita a primeira deputada indígena do País, Joênia Batista de Carvalho (Rede-RR), conhecida como Joênia Wapichana. Ainda preocupa a não participação política parlamentar das lideranças. De acordo com a matéria, o número de candidatos que se declarou naquelas eleições chegou a 130. Representavam 0,47% no universo de 27,5 mil nomes.

A luta continua, precisamos com eles formar fileiras. Tudo leva a crer que foi a possibilidade da construção de um projeto político que garantisse uma plataforma de onde emergiria uma voz que desse legitimidade às demandas do movimento que foi criada a chamada Frente Parlamentar Indígena. Com toda certeza o objetivo da gente é lutar pela implementação de políticas públicas em defesa dos direitos originários em todos estados, sobretudo direcionadas a educação, saúde e demarcação de terras.

Bibliografia consultada.

CRUZ, Tereza Almeida. Os processos de lutas e resistências dos povos indígenas do Brasil. In: Revista SURES. Número 9, 2017. Acessar: https://ojs.unila.edu.br/ojs/index.php/sures.

MELO, Ana. A atuação do Conselho Indigenista Missionário na promoção do protagonismo indígena. In. Anais do 30° Simpósio Nacional de História - História e o futuro da educação no Brasil / organizador Márcio Ananias Ferreira Vilela. Recife. 2019. Acessar: https://www.snh2019.anpuh.org/site/anais.

HTTPS://www.nexojornal.com.br

https://www1.folha.uol.com.br

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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.    


Reflexões sobre uma pedagogia de base africana

Lavini Castro*

Os saberes e fazeres africanos precisam ser reconhecidos como atributos característicos da cultura e identidade brasileira. Nossa sociedade possui características peculiares, pois foi formada por uma diversidade de etnias com suas diferenças culturais; povos pindorâmicos, europeus e africanos deixaram seus legados e memórias, algumas dessas heranças são visivelmente percebidas em nosso cotidiano, história ou cultura, mas outros tantos legados são relegados a marginalização ou mesmo a tentativas de silenciamento ou apagamento históricos. Uma situação que confirma profundas desigualdades no meio educacional que ainda mantém um currículo conservador para a diversidade apesar da Lei 10.639/2003 que nos obriga ao estudo da história e cultura da África e dos afro-brasileiros.

É indispensável que os currículos e livros escolares sejam desenvolvidos sem qualquer conteúdo racista ou de intolerância. É preciso entender a educação em prol da diversidade enxergando as contribuições dos diferentes grupos na formação da nação e cultura brasileiras, pois ignorar a diversidade de contribuições é uma forma de discriminação racial.

Para que o ensino aprendizagem dos grupos herdeiros da história brasileira ocorra de forma satisfatória é necessário o aprofundamento das temáticas da Lei 10.639/2003 no sentido de enaltecer a igualdade racial. Dessa forma trazemos como contribuição para o nosso afrodiálogo dessa semana o artigo Buscando caminhos nas tradições de Helena Theodoro em que a autora nos apresenta a pluralidade das tradições como um caminho para a realização de um ensino mais democrático, pois pensar a pluralidade é pensar diferentes perspectivas e visões de mundo que colocam em xeque a idealização etnocêntrica de um mecanismo de pensamento baseado na história e cultura europeia, provocando pensar o ideal eurocêntrico como apenas mais uma forma de construção histórica de um povo.

Theodoro nos contempla com a premissa de que: "Todos podem ser diferentes mas são absolutamente necessários", assim nos faz enxergar o valor na diversidade e sua importância para a construção de diferentes formas de linguagens e maneiras de aprender, com conceitos de aprender mais prazerosos e responsáveis.

Como exemplo, a autora nos apresenta as contribuições dos povos africanos destacando o que deixaram de legado no quesito linguagem. As principais etnias africanas trazidas para o Brasil foram os nagôs, fons e bantos.

De todos esses povos, os bantos foram aqueles que mais contribuíram para o que hoje podemos falar a respeito do "pretoguês". Não foi a toa que as declarações do Dom Avelar Brandão, Arcebispo da Bahia, caíram por terra quando tentou descredenciar a cultura brasileira do processo de africanização, sugerindo ser a africanização um processo de regressão, como bem nos contou Lelia Gonzales (1984). Ou seja, as contribuições africanas sendo castradas do cenário histórico cultural brasileiro.

Contudo Theodóro (2005) e Gonzáles (1984), não deixaram de apresentar tais elucidações das contribuições culturais africanas no que diz respeito à língua brasileira. De acordo com as autoras podemos constatar palavras de origem banta em nossa língua, naquelas que apresentam as sílabas iniciais como Ba, Ca, Cu, Fu, Ma, Mo, Um, Qui; ou quando na sua formação aparecem os grupos consonantais Mb, Nd, Ng; ou mesmo as sílabas terminais Aça, Ila, Ita, Ixe, Ute, Uca. Dessa forma, palavras como: caçula, cachimbo, fubá, macumba, quilombo, samba, dendê, quengo, macaca, entre tantas outras, são contribuições da língua banta em nosso idioma atual. De acordo com Theodoro, ao localizar no dicionário as palavras que trazem a indicação de Bras., que significa a abreviação de brasileirismo é sinal de que a palavra, em sua maioria, é de origem banta. Podemos perceber que a influência é maior do que imaginamos. O mesmo ocorre com a influência linguística iorubá, mas esse idioma está mais presente nas celebrações religiosas no culto aos orixás.

A história da África e da cultura africana, pertencem ao universo da cultura brasileira, não obstante ocupar uma posição quase imperceptível na área educacional. Notamos sua presença latente em nosso idioma, ainda que não tenhamos consciência de tamanha contribuição, por isso a importância da implementação da Lei 10.639/2003 e da disseminação das pesquisas dentro dessas temáticas.

Diante do que foi exposto, a questão que se coloca como um entrave para a aplicação da legislação especifica, passa a ser as resistências provenientes de preconceitos e a falta de formação dos docentes. Nunca é demais destacar que o fazer pedagógico carece de uma nova orientação que permita a aprendizagem plural das ideias, saberes e visões de mundo distintas. É urgente educar para as relações étnico raciais, conforme vimos temos modos africanos e afro-brasileiros de viver, não somos um todo ho­mogêneo.

Por exemplo, trabalhar conceitos afro-brasileiros enquanto estratégias pedagógicas é um bom caminho. Um desses seria a circularidade uma vez que através das rodas de conversas, olhando olho no olho dos alunos, e mediando a aula como uma grande e rica conversa em que todos têm algo a acrescentar. A oralidade é um outro conceito, permite que todos falem sobre si, sobre sua visão de mundo, sobre suas experiências, a fala possibilita portanto a legitimação de um saber. Recorrendo à religiosidade afro-brasileira podemos não só aprender sobre outras percepções do sagrado, mas podemos compreender a interação do sagrado afro-brasileiro com a natureza e despertar, assim, para a sobrevivência humana em relação a ela.

O afrodiálogo dessa publicação vem no sentido de salientar que: precisamos reforçar uma pedagogia de base também africana, pois se caracteriza por desenvolver maior participação do corpo discente, bem como explora o afeto e emoção, em que há espaço, conforme nos ensinou Theodoro, para a dança, a música, a comida, o compartilhamento e o respeito. Nesse caso aos mais velhos são traduzidos como aqueles que transmitem sabedoria, contudo não se elimina a responsabilidade dos mais novos, pois seu crescimento virá da aprendizagem através dos desafios e dificuldades.


Referências Bibliográficas

GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, São Paulo: Anpocs, 1984,

Saberes e fazeres, v.1 : modos de ver / coordenação do projeto Ana Paula Brandão. - Rio de Janeiro : Fundação Roberto Marinho, 2006

Superando o Racismo na escola. 2ª edição revisada / Kabengele Munanga, organizador. - [Brasília]: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

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* Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Pesquisadora do LHER/ERARIR e Co-coordenadora Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação.    



O que a premissa de um passado clássico sem a contribuição de africanos diz sobre a lógica do racismo

Lucimar Felisberto dos Santos*

Para entender as relações étnico-raciais na Antiguidade, o historiador Rogério José de Souza (que recebemos para um afrodiálogo na última sexta-feira) adentrou as experiências e práticas dos agentes do mundo grego. O ponto inicial proposto no projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ era a análise de traduções da Tragédia de Édipo. Questionava o desvio de sentido e significado de um fragmento que expressa a característica fenotípica do herói grego na transcrição da obra para os idiomas espanhol, inglês e francês. Ao longo da pesquisa, reorientou o fio de condução da análise ao perceber a possibilidade de interrogar a neutralidade da produção científica.

O fragmento mencionado refere-se à descrição dada por Jocasta da aparência de Laios, seu marido falecido e pai de Édipo. Entre outras características fenotípicas a personagem mitológica destaca o termo 'mélas' para indicar sua aparência negroide. Em um padrão que se tornou comum aos diversos tradutores de língua portuguesa, a passagem vem sendo ocultada, suprimida ou substituída por mégas (grande). Segundo argumenta Rogério, a reiteração pode indicar a tentativa de se preservar as imagens gregas clássicas do senso comum popular e acadêmico. O que pode ser interpretado, fundamentalmente, como uma "orientação teórico-metodológica oculta" que ele identifica com racialismo, por ser imbuída da premissa de um passado clássico sem a contribuição de africanos.

Tal lógica racista deixa evidente que para aqueles que se debruçaram na formulação do ideal homem grego (literatos, historiadores, psicanalistas, etc.) seria inaceitável que um dos mitos fundadores da cultura ocidental fosse de origem africana. Assim, Sófocles, o escritor da tragédia e um dos mais importantes dramaturgos gregos só poderia estar "enganado" necessitando sua obra da devida "correção" feita pelos tradutores.

A pesquisa integra o campo de estudos de "revisão" das interpretações de matriz européia. Rogério argumenta que tal procedimento vem sendo necessário por conta de elas evidenciarem racialização e hierarquização dos diferentes grupos humanos, "tanto explicitamente, quanto implicitamente, impedindo a ampliação de estudos dos povos africanos ao período que antecede a chegada dos europeus ao "continente negro". Essa tendência contribui para a construção de uma historiografia das relações raciais no período que antecede esse evento, na chave classicismo e etnicidade. Problematizando o lugar social do cientista ocidental a tendência promove, portanto, um reexame das "representações eurocentristas construídas em nossa sociedade, levando-se em conta o seu papel na reprodução social dos grupos historicamente estabelecidos".

Em matéria do site Geledés, publicado em 21 de janeiro de 2016, já se tinha chamado a atenção para o fato de o senegalês Cheikh Anta Diop (formado em Física, Filosofia, Química, Lingüística, Economia, Sociologia, História, Egiptologia, Antropologia) ter derrubado o racismo científico ao demonstrar que o Egito antigo era uma civilização negra. Ele é uma das referências utilizado na dissertação de Rogério J. Souza. Comprovou, por exemplo, que a cultura egípcia era africana na lingüística. Hoje sabemos que toda a humanidade é descendente do continente africano, incluso os egípcios, que somente o racismo dos egiptólogos respondia pela tentativa de se excluir essa possibilidade; que a teoria monogenética e africana da humanidade, sustentadas em descobertas arqueológicas realizadas ao longo do século XX, em sua maioria, apontaram a África como o berço da humanidade.

Em suas pesquisas, Diop evidencia o desenvolvimento de duas diferentes unidades culturais distintas. Em um polo está o berço setentrional e a Europa, sua herdeira direta; no outro está o berço meridional, antepassado da África. Destaca que as diferenças entre o Norte e o Sul iam além da estrutura familiar (patriarcado versus matriarcado). Elas se manifestavam igualmente na organização do Estado, na concepção de realeza e nos sistemas filosóficos e morais. É com essa perspectiva que inclui a humanidade como um todo no processo histórico.

Considerado um filósofo da História, as ideias historiográficas e políticas de Ckeikh Anta Diop foram objeto de pesquisa de Jorge Henrique de Jesus. Para alguns estudiosos, por ter refletido sobre o sentido da História da humanidade, suas causas e seus efeitos, o senegalês contribuiu com a chamada Filosofia Crítica da História, igualmente chamada de Epistemologia ou Teoria da História. Reflexivamente, a principal contribuição dos estudos diopianos é a afirmação da historicidade da África em contraposição aos pressupostos a-históricos que guiavam os estudos etnológicos sobre o continente. De acordo com Jesus, "É interessante destacar que Hegel, considerado o filósofo da História por excelência, é o mesmo que escreveu que "A África não é um continente histórico; ela não demonstra nem mudança nem desenvolvimento", e que os povos negros "são incapazes de se desenvolver e de receber uma educação".

É inegável que introduzir conteúdos da História da África e da cultura afro-brasileira no currículo escolar para positivar a imagem de nos negros descendentes de povos africanos é uma estratégia fundamental. Entretanto, para derrubar a imagem depreciativa da África como lugar de povos atrasados, fechados para a razão e fornecedor de carne humana desqualificada faz-se necessário romper com uma certa filosofia da História e reorientar a estrutura teórico-metodológica de modo a se evidenciar as contribuições do complexo civilizacional que nela teve origem.

Referências bibliográficas:

JESUS, Jorge Henrique Almeida de. O Despertar da África: As ideias historiográficas e políticas de Cheikh Anta Diop. Monografia (Bacharelado e Licenciatura em História). Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016.

SOUZA, Rogério José de.Tragédia "Édipo Rei" de Sófocles. O que ela tem a nos dizer sobre relações raciais no campo da historiografia Clássica brasileira. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.

https://www.geledes.org.br/cheikh-anta-diop-derrubou-o-racismo-cientifico-ao-provar-que-o-egito-antigo-era-uma-civilizacao-negra - Acesso em 15/06/2020.

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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.   


A NEGOCIAÇÃO DA NEGRITUDE NO MEIO NEOPENTECOSTAL

Lavini Castro*

O afrodiálogo dessa semana será sobre a negociação da negritude no meio evangélico demarcado como neopentecostal.

Para iniciar a conversa cito Nina Rodrigues que em sua obra "O animismo fetichista dos negros baianos" identificaria a possessão como um caso coletivo de histeria dos negros e dos povos mestiçados. Pois é, para o médico baiano as celebrações e rituais eram um problema de natureza biológica, contudo os estudos de Nina Rodrigues promovem observar certa associação entre culturas ao mencionar: "longe do negro se converter ao catolicismo, é o catolicismo quem vem recebendo a imensa influência do fetichismo e se adapta ao animismo" (Schwartcz, 2007, p. 882).

Nesse sentido podemos observar a dificuldade da imposição direta e nítida da cultura de um grupo étnico sobre outro, além de compreender a possibilidade de brechas para se pensar um contexto mais relacional no que geralmente é identificado como uma imposição ou desencontro de culturas.

Dessa forma, por mais perverso que fosse o contexto colonial não podemos descartar a possibilidade da negociação entre o sujeito negro e suas estratégias de manutenção de valores em contato com a imposição civilizatória europeia presente desde os tempos coloniais - lembrando que tal comportamento de conciliação pode ser observado num contexto estritamente subjetivo. Disso resulta a questão de como os negros mantém seus valores em religiões cristãs que promovem a demonização da cultura afro-brasileira?

O interesse em discutir essa questão partiu da constatação do crescimento do quantitativo dos fiéis afro-brasileiros nas religiões pentecostais e neopentecostais e da realidade de reivindicações da valorização da história de protagonismo negro, da valorização da cultura, estética e religião dos grupos afro-brasileiros. Sendo assim refletimos se é cabível aos negros evangélicos estarem também vinculados às demandas de valorização da negritude que têm se feito presente na atualidade.

Apesar da realidade de intolerância religiosa, de cunho fundamentalista, praticada contra os aspectos da cultura afro-brasileira é possível percebermos atitudes de reivindicação de grupos negros evangélicos começando a fazer soar suas demandas culturais, estéticas e históricas no meio social, cultural e no espaço religioso também.

Através da pesquisa de Márcia Leitão Pinheiro sobre religião, raça e música é possível compreender o espaço musical gospel como uma forma de se expandir noções sobre negritude. Isso nos mostra como o negro vem projetando sua negritude através da música evidenciando que não há inteiramente a assimilação total de uma cultura sobre um grupo racial, mas uma fusão cultural tendo o negro como articulador também do que se resulta de tais aproximações culturais.

Opinião semelhante é apresentada por Petrônio Domingues (2011) quando o autor denomina a característica afro-diaspórica como sendo as vivências do negro marcadas por inúmeras experiências que lhe permitiram adquirir comportamento perspicaz pronto a enxergar ou a experimentar novas possibilidades. Viver em possibilidade permitiu ao negro flexibilizar sua identidade e valores culturais no contexto diaspórico.

A respeito de pensar o afro-brasileiro como um ser múltiplo em decorrência do que experimentou e continua experimentando do processo diaspórico, Petrônio Domingues nos diz o seguinte:

Para estudar o negro no pós-abolição, recomenda-se, igualmente, desconsiderar as abordagens essencialistas das identidades e culturas negras. Em vez de fixas, naturalizadas e congeladas, as identidades e culturas dos indivíduos são construções dinâmicas, relacionais, fluidas e concatenadas em cada situação específica. Os negros articularam iden­tidades plurais, estabeleceram fronteiras étnicas móveis e transigiram formas culturais híbridas. Não param aqui os desafios dessa nova área de estudos e pesquisas, de modo que se deve surpreender os afro-catarinenses pelo prisma de suas tradições, acomodações e ambivalências, atentando para os diferentes sentidos e significados que eles conferiram à sua maneira de ser, pensar e agir. (DOMINGUES, 2011, pag. 132)

Portanto no que diz respeito à relação entre identidade afro-brasileira e identidade religiosa neopentecostal identificamos o protagonismo do negro quando este elemento afirma sua negritude ao trançar o cabelo, ou na escolha de estilos de roupas que evoquem a cultura afro e ao participar de atos em defesa da cultura e religiosidade afro-brasileira como, por exemplo, os casos de intolerância religiosa que afetam em maior volume os terreiros de umbanda e candomblé.

Como bem nos alertou E. P. Tompson ao pensar a história "vista de baixo", os grupos das classes "inferiores" são tão agentes quanto os grupos das classes "superiores", devem ser analisados como aquele elemento que afeta em maior ou menor grau o ambiente compartilhado coletivamente. Podem não ser todos, mas os negros evangélicos de cunho neopentecostal estão atentos ao racismo criando estratégias para sobressair sua cultura e seu legado.

A respeito da defesa de grupos negros evangélicos ao seu legado histórico e cultural africano: seria consciência política de reconhecimento da cultura negra como pertencente a história brasileira? Seria afeto por já ter feito parte do meio religioso de matriz afro-brasileira? Seria noção de igualdade de direitos? Podemos encontrar inúmeras identificações dos negros evangélicos a esse respeito. O interessante não é apenas descrever tais identificações, mas entende a identidade como um resultado de processos sócio-históricos em que o indivíduo negocia sua sobrevivência de forma subjetiva.

A identidade negra neopentecostal é algo diferente do que se espera que um negro seja dentro do neopentecostalismo, pois o negro neopentecostal que participa de uma caminhada contra a intolerância religiosa, vai a grupos de estudos sobre intolerância religiosa, ou aplica de fato a Lei 10.639/03 apresentando a diversidade cultural de nosso país como potencialidade criadora, rejeita a construção ideológica mantida pelo mito da democracia racial. O negro neopentecostal que assume uma postura política em relação ao sua negritude é um diferencial. Nesse sentido devemos pensar que se ao negro da diáspora foi imposta nova condição cultural dela não ocorreu submissão total, mas comportamentos negociadores que perpassavam por estratégias criativas para garantir a sobrevivência não só do elemento negro como sua própria cultura. 

Bibliografia

ANJOS, JOSÉ CARLOS GOMES DOS e ORO, ARI PEDRO. Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre: SMC, 2009 [Capítulo 5, parte I] e [Capítulos 1 a 6, Parte II].

GOLDMAN, MARCIO. Contra discursos afroindígenas sobre mistura, sincretismo e mestiçagem estudos etnográficos. Revista de Antropologia da FUSCar, São Paulo, vol 9, n.2, p 11-28, jul./dez. 2017.

MUNANGA, Kabengele. Negritude. Usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012

ORTIZ, FERNANDO. Los negros brujos. Miami: Ediciones Universal, Colección Ebano y Canela 2, 1973.

RODRIGUES, RAIMUNDO NINA. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935.

SERRA, ORDEP. "Sincretismo e Separação" [Capítulo 2]. In: SERRA, ORDEP. Águas do rei. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes e Koinonia, 1997, p. 191-287.

Sites:

www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/a-identidade-negra-e-os-neopentecostais-sao-incompativeis publicado 04/05/2018 18h10, última modificação 04/05/2018 11h33. Acesso: 06/08/2018.

file:///C:/Users/hgh/Documents/Mestrado/Religi%C3%B5es%20Afro/143005-Texto%20do%20artigo-282408-1-10-20180202.pdf. Acesso: 07/08/2018.

https://institutoparacleto.org/2012/12/01/a-religiao-mais-negra-do-brasil-o-pentecostalismo/Acesso: 07/08/2018.


* Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Pesquisadora do LHER/ERARIR e Co-coordenadora Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação.   


Categorias raciais e jurídicas como marcadores de lugar social

Por Lucimar Felisberto dos Santos*

Sempre que um ou uma colega, seja professor ou professora ou não, vê na minha pessoa algum tipo de autoridade para abordar a temática sobre relações raciais, uma das primeiras dúvidas que faz referência é sobre a diferença entre as categorias "preto" e "negro", algumas vezes "afrodescendente" também é citada. Quase imediatamente procuro deixar claro que se podem considerar negros todos aqueles que têm alguma ancestralidade africana, mesmo que sejam também descendentes de europeus ou de índios.

Esclareço, em seguida, que "preto" diz respeito a uma das categorias do sistema de classificação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas); que em todos os países os sistemas e classificação retratam a história de sua sociedade. Os marcadores de diferenciação no caso brasileiro têm a ver com traços ou marcas aparentes, ou seja, com o fenótipo do indivíduo. Assim, adotando o critério da "autodeclaração" as cinco categorias de cor ou raça do sistema brasileiro são: "branca", "preta", "parda", "amarela" e "indígena".

O primeiro Censo oficial brasileiro realizado em 1872 já trazia os principais vocábulos raciais hoje usados: "branco", "preto", "pardo". Neste censo, a categoria "cabloco" ou "acablocado" definia o indígena. Era a forma de classificação e hierarquização racial corriqueiramente utilizada pela sociedade brasileira. Em 1890 o termo pardo foi substituído pelo mestiço e nos cadastros deixou de haver uma categoria que fizesse referência aos indígenas. O vocábulo voltaria a ser utilizado em 1940, após um período em que se ignorou a classificação racial, e, em razão da imigração asiática, se incluiu a categoria "amarela". Enquanto categoria racial, uma vez que as demais informavam cor, se inclui a "indígena" em 1991.

Importa ressaltar que sempre que oficialmente utilizados, os termos preto e pardo fizeram referências a indivíduos africanos e/ou afrodescendentes. Por exemplo, em 1872 as categorias preta e parda eram as únicas aplicáveis à parcela escrava da população, embora pudessem também enquadrar pessoas livres, assim nascidas ou alforriadas. Com o mesmo sentido que atualmente fazem referência ao não branco de ascendência europeia, sendo juntas, portanto, sinônimos para negros ou afrodescendentes.

A questão que se coloca envolvendo o tema surge de um dilema: embora muitos não negros tenham a impressão que ofendem ao chamar uma pessoa de "preta" outros argumentam que o termo "negro" remete à antiga condição escrava e é, portanto, ofensivo. Podemos então estar diante de duas vitórias do projeto da modernidade. Primeiro, a permanência de uma dada visão racializada do mundo onde predominou a crença na existência de hierarquias na humanidade cuja distinção se dava a partir das diferenças entre as raças, entendidas como um conceito essencial e respaldado na biologia. A segunda vitória seria a negação da experiência da escravidão como parte constitutiva da nossa história nacional. Ou seja, mesmo que tenhamos em mente que a identificação étnico-racial é uma interação social e socialmente construída e que, no Brasil, ela vai além da cor da pele ou da ancestralidade de cada pessoa, temos que a contrariedade com o modelo adotado pelo sistema de classificação do IBGE para definir "pessoas de cor", ou mesmo quanto ao uso político da categoria "negro" em detrimento da "afro-brasileira", tem a ver com a reminiscência tanto de um modelo racializado de se marcar diferenças sociais quanto de um passado que se quer rejeitar.

Evidenciar esse passado pode colaborar para colocarmos algumas coisas nos seus devidos lugares. As classificações colonial e imperial brasileiras indicaram que outros atributos físicos além cor, bem como aqueles sociais, faziam parte do mous operandi daqueles sistemas. Por exemplo, Tales dos Santos (2005) analisando os arquivos da Santa Casa de Misericórida da Bahia chamou a atenção para a nossa secular multipolaridade racial, ao demonstrar a existência de, pelo menos, trinta categorias multipolares utilizadas para identificar as crianças por ocasião de seus assentamentos de batismo. Não obstante as quatro categorias básicas serem "branco", "cabra", "crioulo" e "pardo", surgiram na documentação outras com sentidos agregados como: "alvo", "moreno", "claro", "pálido" "trigueiro" e "escuro". Entretanto, "branco" e "pardo" corresponderam juntas a 68,5%. Pardo significando o de pele mais retinta. Entretanto, com exceção de "crioulo", todas as outras categorias podiam compor qualquer repertório na classificação.

A exceção do termo crioulo se dar por ele se aplicar principalmente aos descendentes de escravizados, uma designação social para o negro "nacional" de uma primeira geração de afrodescententes. Ressalta-se que no sistema de classificação colonial o termo "mestiço" era usado quando não se podia definir a mistura racial; que, enquanto cabra fazia referência ao indivíduo filho de pai pardo e mãe negra ou vice-versa, tanto "preto" quanto "negro" qualificavam prioritariamente africanos, escravizados e forros. Como se vê, as categorias raciais, no mais das vezes, informavam o lugar que o indivíduo ocupava na sociedade. Mesmo as que indicavam cor podiam ser alteradas a depender da mobilidade social do quem por ela era qualificado.

Ao longo de nossas MasterClass do mês de maio, várias categorias jurídicas criadas justamente para marcar o lugar social diferenciado daqueles que viviam ou deixavam para trás a experiência do cativeiro atravessaram o nosso afrodiálogo. A linha condutora da nossa narrativa foram as leis anti-tráfico e as abolicionistas. Por exemplo, ao discorrer sobre a lei de 1831 que proibia a importação de escravos no Brasil, além de declarar livres todos os escravos trazidos para terras brasileiras a partir daquela data, destacamos nela a regulamentação de uma categoria especial que vivia entre a escravidão e a liberdade: os "africano livres". Produto daqueles diferentes navios negreiros capturados transportando-os na condição de escravos. Ressaltamos que desta data até a abolição formal da escravidão, foram recorrente a escravidão ilegal desses sujeitos, ainda que lhes fosse resguardado legalmente o direito de não ser submetido àquele regime.

No âmbito da lei de 28 de setembro de 1871 sobressaiu a figura do ingênuo, qualidade jurídica dos filhos da mulher escrava que nascessem no Império, a partir daquela data, que seriam considerados de condição livre não obstante constar a obrigatoriedade de ficarem em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais teriam a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de 8 anos completos. Das leis abolicionistas decorrem também a categoria "libertando" - seria aquele escravizado que havia depositado um valor por sua indenização e/ou estava em demanda judicial por sua liberdade. Os "Treze de Maio" fecharam o nosso mês, assim foram identificados na documentação pesquisada os ex-escravizados que receberam sua liberdade em razão da assinatura da lei Áurea.

A Afrodiálogos considera relevante dar evidencia a esses temas e problemas por conta da falta de conhecimento sobre o passado da população negra brasileira e pela emergência de se relacionar as experiências desse passado, inclusas as do contexto escravista com a história do Brasil. Nessa perspectiva, é que se localizam as lutas dos movimentos sociais negros para recontar a história do negro. E o uso da categoria "Negro" é justamente para dar unidade à causa desses que são os não brancos, unificando-os. Não estão sendo medidos escorços para superar o caráter pejorativo impregnado no termo. Ou seja, recontar a nossa história passa por imprimir significados novos ou ressignificaro termo "negro", demarcando-o como valoroso.

Referências Bibliográficas:

GUERREIRO, Rafael Osório. O SISTEMA CLASSIFICATÓRIO DE "COR OU RAÇA" DO IBGE. Texto para discussão nº 996, Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2002.

TEIXEIRA, Maria da Conceição. "CABRA, CRIOULA, FULA":ESTUDO DO VOCABULÁRIOCONTIDO EM ANÚNCIOS DE JORNAIS DO SÉCULOXIX". Cadernos do XIX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIARio de Janeiro: CiFEFiL, 2015.

TELES DOS SANTOS, Jocélio. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações raciais no Brasil dos séculos XVIII-XIX. Afro-Ásia, núm. 32, 2005, pp. 115-137.

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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.  



SER NEGRO, uma questão de referencial

Lavini Castro*

As reflexões do afrodiálogo dessa semana diz respeito à uma interpretação do livro Pele Negra Máscaras Brancas de Frantz Fanon.

Fanon é conhecido por ser um revolucionário. Nascido na ilha da Martinica em 1925 lutou junto às forças de resistência na África sendo condecorado por bravura. Seu maior legado, entretanto, são suas obras em que nos brinda com um discurso ora epistemológico em que critica conceitos ora didático em que explica-nos mecanismos sociológicos ensinando novas referências de conceitos que nos fazem ir além do está consagrado. Ler Fanon, portanto, é rever a posição do negro nas relações sociais.

Em Pele Negra Màscaras Brancas, Fanon discute a maneira como o homem comum se descobre negro a partir das experiências vividas num mundo formado pelo pensamento racista. Para Fanon o homem comum ao procurar sentido de ser através das relações sociais acaba se descobrindo "coisa" em meio às outras coisas. Isso porque numa sociedade que toma como modelo de civilização os padrões europeus, uma pessoa negra será sempre negra ao contrário de ser vista como simplesmente uma pessoa. Assim, a definição de homem negro já está carregada de sentido ruim pelo olhar racista; o homem negro será sempre o outro.

Na análise a respeito da experiência vivida do negro, Fanon percebe que o sujeito negro vive uma realidade construída para que ele se veja enquanto negro e não como um simples ser humano. Portanto, a luta do negro se pauta em superar o que dizem dele e tentar viver como ele realmente é: um homem como qualquer outro. Mas a ideologia do pensamento branco, que cria representações a respeito do ser negro e enquadra tanto o negro quanto o branco num determinado perfil de comportamento social, impede o negro de se desvencilhar do que os olhos do homem branco acreditam ser a realidade do homem negro, diferente da realidade do homem branco. Esta condição regulamentada pela sociedade, padronizada no discurso eurocêntrico colonizador, impõe a todos sentirem a realidade construída mediante o processo de dominação europeia como algo natural, impedindo-os de perceber como tal constatação foi construída socialmente, registrada em discursos e práticas sociais que ignoraram ou excluíram o homem negro de sua essência humana, em primeiro lugar, para o modelarem como um sujeito que se tornaria negro.

A crítica de Fannon sobre a experiência vivida pelo negro é o fato do sujeito negro ser uma representação do que o branco entende ser. Os negros não são o que os brancos entender ser a pessoa negra, mas o comportamento do branco com o negro interfere em suas vidas afetando seus sentimentos para consigo mesmo. Para o autor todos deveria ser vistos como sujeitos humanos sem precisarem carregar o espectro da raça, porém o negro carrega a herança construída sobre ele de como os negros devem ser.

Segundo Fanon, aqueles negros que se comportam conforme o discurso civilizador modelador, não enfrentam muitos problemas sociais porque sua realidade já é esperada, eles não afetam a ideologia que cristalizou o pensamento de como deve ser o negro nas relações sociais. Contudo o negro questionador, já é algo inconcebível, porque não se pode alterar o que é entendido como natural, o fato do negro ser inferior ao branco. Descrevemos uma concepção racista onde o que está regulamentado é o negro ser inferiorizado nas relações e aquele que enfrenta o discurso seria uma aberração; como poderia um negro questionar seu lugar naturalmente definido? Mas sabemos que a sociedade e suas ideias são construídas pelas ações humanas.

Fanon entende a supremacia do pensamento branco prescrevendo e explicando racionalmente as diferenças entre negros e brancos, provoca-nos a observar a força de um pensamento que vem regulamentando a vida do homem negro há gerações.

Cabe-nos a seguinte reflexão: o que teria legitimado o fetiche branco de superioridade? Por que o negro aceitou ser inferiorizado por tal fetiche? Pois sabemos que há um problema que supera a ordem socioeconômica, que definimos como racismo. Afirmamos com total clareza a presença do discurso racista no contexto civilizatório europeu, porque somente partindo da irracionalidade, como nos sugere Fanon, para pensar que brancos pudessem ser superiores aos negros por questões fenotípicas.

Voltando a proposta inicial deste texto que é entender o que Fanon quis dizer com a experiência vivida pelo negro, pensamos que as sociedades que foram colonizadas no âmbito mercantilista, permitiram a possibilidade para as ações de dominação e exploração que demarcaram representações de como seriam os grupos dominados da mesma forma que alimentou a imaginação de como seriam os grupos dominadores, criando solo fértil para a cristalização de uma ideologia que há tempos vem promovendo a crença de uma realidade normal e inalterada onde a experiência do negro tem sido marcada pela sensação de inferioridade em relação ao branco. 

Bibliografia 

Fanon, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas/Frantz Fanon; tradução de Rentao da SIlveira.- Salvador: EDUFBA, 2008. p 194

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* Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Pesquisadora do LHER/ERARIR e Co-coordenadora Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação.  


"E se os melhores não 

estiverem entre nós?"

Lucimar Felisberto dos Santos*

Uma nova onda negra questionadora da hegemonia branca provoca novos medos nas elites brasileiras. 

Em 1987, refletindo sobre raça, racismo e abolicionismo, Célia Maria Marinho de Azevedo publicava o livro titulado Onda Negra Medo Branco: O Negro no imaginário das Elites - Século XIX. Eramos resultados de suas pesquisas sobre a instituição do mercado de trabalho livre em substituição ao escravo no Brasil do século XIX. O viés marxista adotado pela historiadora destacava sobretudo a luta de classe, mas ressaltava as questões raciais chamando a atenção para a distinção feita de categorias como as de negros e de indígenas. A ponto de o negro no Brasil ser uma questão, sendo preciso integrá-los ao mundo dos brancos.

O discurso produzido à época era que "os ex-escravos e seus descendentes saiam espoliados da escravidão e despreparados para o trabalho livre, incapazes, em fim, de se adequarem aos novos padrões contratuais e esquemas racionalizadores da grande produção agrícola industrial, tornando-se doravante marginais por força da lógica inevitável do progresso capitalista". Isso com base no argumento de que estavam "acostumados a relações patriarcais de dependência". A partir de formulações com teor étnico-racista já destacado de forma crítica pela historiografia, postulavam a inadaptação do negro à sociedade competitiva.

Apesar dessa dimensão discursiva, ao ler livros de autoria de homens da elite que procuravam formular propostas relativas à instituição de um mercado de trabalho livre em substituição ao escravo, Célia Maria M. Azevedo reconhece um imaginário construído a partir do medo ou da insegurança suscitada por conflitos reais ou potenciais. Identifica nos argumentos e nas propostas que entravam na construção das mais diversas políticas, que se considerava perigosa a autonomia que vinha sendo conquistada pelos escravizados; que se temiam a perda de controle sobre eles. Recuperando a dimensão histórica do medo, na sua avaliação, os "brancos ou esfolados bem-nascidos e bem-pensantes, durante todo o século XIX, realmente temeram acabar sendo tragados pelos negros mal-nascidos e mal-pensantes".

Foi como estratégia de superação deste medo, mas com explicações estruturadas e bem elaboradas a partir da lógica da elite branca, que foi montado o quadro da marginalização inevitável do negro por força da herança da escravidão. Fundamentalmente, era a subalternização do considerado o outro, bem como a manutenção do controle sobre a população de ex-escravos e de seus descendentes, que dava centralidade narrativa aos textos de leis como as abolicionistas. Mesmo as que proibiam o tráfico negreiro não foram prioritariamente pensadas para reparar danos sociais causados aos africanos arrancados de suas comunidades de origem. Por exemplo, destacamos em nossas masterclass do mês de maio que abordaram as leis de combate ao tráfico negreiro no Império do Brasil, de 1831 e 1850, a primazia dada às questões mercantilistas, tanto quanto no que diz respeito á pressão inglesa em relação ao tráfico intercontinental quanto à politização da repressão ao tráfico em determinadas regiões brasileiras.

Em nenhum dos casos as vidas humanas perdidas no infame comércio ou o processo que convertia pessoas livres em escravizados estavam no centro das preocupações dos governantes. No primeiro caso, a questão não tinha nem mesmo a ver com uma suposta incompatibilidade entre escravidão e a consolidação do capitalismo, uma vez que as relações escravistas também eram voltadas para a realização de lucro e, portanto, parte do modo de produção capitalista. Ao que parece, na percepção do governo inglês, o fim do comércio escravo estimularia o investimento do capital em outras áreas e aqueceria o mercado com novos consumidores. No segundo, destacamos um estudo de caso onde a repressão ao tráfico negreiro no nordeste do Brasil se deu no âmbito de disputas políticas entre proprietários de escravos, usada no enfraquecimento econômico da facção que fazia oposição ao partido de situação.

Na marterclass sobre a abolicionista lei de 1871, destacamos a centralidade dada à manutenção da ordem escravocrata. Fica claro com uma leitura densa do texto da lei que, por pelo menos mais uma geração as elites escravistas pretendiam com ela garantir o uso gratuito da mão de obra dos então denominados "ingênuos" e, ainda, colocar em prática uma política indenizatória aos proprietários de escravos. Será esse o mesmo significado político da lei do sexagenário, para as elites econômicas e política do Império do Brasil. Muito embora os escopos do texto da lei preconizem soluções benevolentes.

Toda a engenhosa e bem elaborada estrutura discursiva vem sendo interpretado por estudiosos que vem procedendo à reavaliação do papel social do negro na sociedade brasileira. Estudos como os que apresentamos em nossas Masterclass resgatam as experiências de protagonismos de homens negros e mulheres negras nas mais diversas conjunturas sociais e em diferentes setores sociais, políticos ou econômicos. Na verdade, o que eles colocam em xeque são as abordagens que defenderam a, ou acreditaram na - parafraseando Peter Eisemberg ao prefaciar o livro de Azevedo - hegemonia arrogante da ideologia burguesa, base do discurso produzido pela elite branca colonial e imperial, que aqueles que a sucedeu buscam preservam intacto.

A capacidade de compreender aquele discurso como uma narrativa produzida na intenção de subalternizar foi essencial quando os estudiosos passaram a fazer uso da memória da escravidão para valorizar e exaltar as experiências dos sujeitos antes desconsideradas. Tem-se a oportunidade de se ir muito além da narrativa da dádiva. E não somente nos argumentos utilizados na elaboração das políticas públicas e na legislação relacionadas com o fim do tráfico e da escravidão no Brasil imperial. Como tem sido demonstrado em cada narrativa que recupera o protagonismo desses sujeitos históricos na história do Brasil, apesar do caráter virulento do racismo foram eles os atores principais no contexto em que se deram as suas experiências. Diante de relatos sobre experiências de mulheres negras e de homens negros, escravizados, libertos e livres, participando ativamente da vida econômica, constituindo família, associando-se de maneiras diversas em defesa de interesses comuns, atuando em cenários político-cultural, de fato, temos que a escravidão legou à população afrodescendente a autodeterminação.

Fundamentalmente, no contexto do século XIX e na primeira metade do XX o discurso sobre a incapacidade intelectual dos homens negros e das mulheres negras teve a ver com o crescimento de seus atos e resistência que colocava medo nas elites e desorganizava as relações de trabalho baseada na força, na coerção e na hierarquização racializada dos papeis sociais dos membros da sociedade brasileira. Na virada do século XX para o XXI, a ficção de organicidade social harmônica criada a partir do mito da ideologia racial não se manteve o tempo necessário para a consolidação de um projeto neocolonizador endógeno. Também este discurso foi revertido, além de diversos movimentos sociais explicitar o caráter racista da sociedade brasileira e aumentarem as estratégias antirracistas com vista a corroer a institucionalização do racismo por evidenciar e denunciar a sua existência. Esse é o movimento que agora amedronta as elites brancas.

O medo, que pode ser percebido na dos ataques que visam ao retrocesso de conquistas históricas e virulência atitudes racistas, deve-se também ao fato de as elites brancas não estarem preparados para as positivas conseqüências sociais das mitigadas políticas públicas. Até por assimilarem o próprio discurso herdado, subestimaram os efeitos concretos da adoção das cotas raciais que deram mais do que acesso ao ensino de qualidade. A percepção a questão política e a tomada de consciência racial colocam em risco a hegemonia branca justamente por não se julgar mais aceitável que se sufoquem demandas.

Com a formação de quadros qualificados, não queremos mais estar mis constituindo bastidores. Fomos muito além e queremos o reconhecimento do nosso papel nas tomadas de decisões política enquanto responsável pelas bases culturais e econômicas de nosso País. A luta agora deve ser por representatividade, em todos os quadros. Estamos e sempre estivemos em luta pelos nossos direitos civis e por uma redistribuição mais igualitária do poder político! Por sermos mais de 50 por cento da população brasileira, certamente os donos do poder devem sentir-se amedrontados com a possibilidade de mobilização de um onda negra que reivindica o critério racial como organizador de sua agenda. Afinal, e se os melhores não estiverem entre eles?

Bibliografia

Azevedo, Célia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no imaginário das Elites - Século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

CARVALHO, Marcus J. M.A repressão do tráfico atlântico de escravos e a disputa partidária nas províncias: os ataques aos desembarques em Pernambuco durante o governo praieiro, 1845-1848. Tempo, vol.14, n.27, 2009, pp.133-149.

SANTOS, Lucimar F. Os Bastidores da Lei: estratégias escravas e o Fundo de Emancipação. Revista de História (Salvador), v. 1, p. 18-39, 2009.

­­­­­­­­­­­­­­­­_________________. Páginas da vida: experiências maternais de mães negras no antes e no pós Lei do Ventre Livre. Rio de Janeiro, 1869 - 1888. In: 8º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2017, Porto Alegre. 8º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2017.

SILVA, Aline Freitas de Paula e; DANTAS, Ivo (Orient.). A lei de 1831 e os caminhos da liberdade através do judiciário no século XIX. 2019. TCC (graduação em Direito) - Faculdade de Direito do Recife - CCJ - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Recife, 2019.


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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju. 


A importância da História e Culturas Afro-brasileiras na condução da noção de pertencimento 

Lavini Castro*

O afrodiálogo de hoje pretende desenvolver uma reflexão sobre a questão da apropriação da história e cultura afro-brasileira para provocar a consciência identitária dos afro-brasileiros.

Até o ano de 2016 a Lei 10.639/03 tornava obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, visando assegurar o direito à igualdade de visibilidade das diversas culturas que compõe a sociedade brasileira. Entretanto podemos observar que o cumprimento da lei era extremamente precário.

Podemos observar em diversas pesquisas acadêmicas sobre o impacto da Lei 10.639/03 nas que não são todos os professores que abordam o tema da História e Cultura Afro-brasileira e Africana em seus conteúdos de forma sistemática ou quando trabalham o tema restringe-o a semana de consciência negra no mês de novembro.

Dentro do contexto brasileiro que torna obrigatório o ensino da História da África e dos Afro-brasileiros um fato nos intriga, a questão da obrigatoriedade de se apresentar o conteúdo sobre a África e Afro-brasileiros, mesmo sabendo que os descendentes da diáspora negra representam mais da metade da população brasileira e pela lógica essa obrigação não deveria existir, pois faria parte de se contar a História de boa parcela da sociedade brasileira e seus componentes étnicos.

Entretanto, por muito tempo o ensino da História sobre a população negra privilegiou o tema da escravidão como único tema referente à história dos descendentes dos africanos aqui escravizados sem lhes atribuir uma origem africana, sem lhes contar um passado coletivo mais atrativo do que os dramas da escravidão. O que vigorou, portanto foi uma história traumática que mais valia a pena esquecer. Uma história sem heróis, reis e rainhas, sem a valorização da ancestralidade, pelo contrário, até início do século passado os valores culturais afro-brasileiros eram perseguidos como caso de polícia.

Chegamos ao extremo de reproduzir discursos históricos onde a princípio se pensou na benevolência da escravidão, como um atributo à evolução do homem negro, ou afirmamos a rebeldia dos negros contrários a viver o regime de escravidão como se não houvesse razão de ser; neste último exemplo os negros eram interpretados como se fossem rebeldes sem causa, pois reagiam ao sistema apenas quando eram violentados por seus senhores, visto desta forma se os negros não recebessem a chibatada aceitariam sua condição de escravos. Era uma história de quase culpa por não aceitar o sistema escravista. A apresentação destes roteiros históricos reforçam o lugar do negro na história nacional como naturalmente fadados a viverem a escravidão, pois passa a ideia de povos adaptados. Seria possível admirar tal discurso histórico? Ou melhor, esta forma como a história de negro é contada conseguiria provocar autoestima e promoção de vínculo entre os afro-brasileiros a respeito de sua história ou mesmo aos seus valores culturais?

Sabemos que a África tem uma história, mas durante muito tempo esta história foi marginalizada, mascarada e mutilada. Joseph Ki- Zerbo em História Geral da África salienta a necessidade de se reescrever a história deste continente para "ressuscitar imagens esquecidas ou perdidas"(KI-ZERBO, 2010). Parafraseando o autor:

                 "Torna-se necessário retornar à ciência, a fim de que seja possível criar em todos uma                                  consciência autêntica. É preciso reconstruir o cenário verdadeiro. É tempo de modificar o                           discurso". (KI-ZERBO, 2010)

A grande maioria dos negros perderam o vínculo com sua ancestralidade, não valorizam sua origem histórica e perderam o contato com a língua materna. Para Kabenguele Munanga em Negritude Usos e Sentidos o autor nos leva a pensar a construção da identidade como uma estratégia ideológica, pois, no caso negro, a formação de nova ideologia que valorizasse o passado negro e seus costumes permitiria não só a definição, mas o reconhecimento da diversidade cultural, a noção de participação política dos negros em sociedade além de reforçar a solidariedade e conservação do grupo.

Contudo, Munaga observa a falta de vínculo identitário na comunidade negra brasileira, principalmente no que diz respeito às diferenças religiosas. A falta de interação entre elementos históricos e linguísticos impediram a criação de conscientização a respeito da ancestralidade do povo negro. Disso resultou a assimilação dos negros da diáspora às culturas europeias. Muito embora elementos especificamente característicos da cultura afro-brasileira tenham sidos associados à cultura nacional, não causaram impacto de valorização da história e cultura negra impedindo a formação de uma identidade cultural comunitária.

Encontramos razões para a perda de vínculo identitário da população afro-brasileira desde os tempos da modernidade. Segundo Carlos Moore[1] no prefácio do livro, Discurso sobre a Negritude (2010), a modernidade foi o momento histórico em que a categoria de raça se tornou totalizante para definir as civilizações, assim se concretizou a visão racista de mundo. Como justificativa capitalista vários povos experimentaram a violência da escravidão e o controle colonial onde povos eram definidos por particulares físicos e culturais que serviram para defini-los como superiores ou inferiores, resumindo, a noção de raça era um fato que definia o homem moderno pelo critério racial, aos povos definidos como inferiores foi imposta a dominação e a função de servir aos interesses capitalistas dos povos ditos superiores.

A falta de noção de pertencimento foi causada por uma série de questões afetivas relacionadas à Era Moderna que ajudou a construir os padrões relacionais atuais pautados na cultura racial. Segundo Frantz Fanon em sua obra Pele Negra Máscaras Brancas (2008), os homens reconhecem o mundo racialmente formado pelos padrões culturais brancos impostos pela modernidade, promovendo no homem negro o desejo de ser branco, pois o universo totalmente branco alienou o negro a não reconhecer suas potencialidades. O negro deixou de ser um simples ser humano para ser reconhecido como um homem negro que quer embranquecer. Citando Fanon podemos perceber o quanto a Era Moderna condicionou os reflexos da pessoa negra causando complexos que somente uma interpretação psicanalítica poderia revelar as anomalias afetivas, vejamos: "O negro quer ser branco. O branco incita-se a assumir a condição de ser humano" (Fanon, 2008).

Segundo Fanon, o negro constata sua inferiorização por perceber sua posição sociooeconômica nas relações em sociedade, isso lhe faz tomar consciência de sua realidade e promove o complexo de inferioridade por ver que negros estão em condições econômicas negativas. Portanto como nos afirma o autor a condição do negro em sociedade não é algo individual, mas um problema social.

Por isso precisamos aprender o que Kabengele Munanga, em Negritude Usos e Sentidos, nos orienta a pensar sobre a construção da identidade negra. Para o autor a tomada de consciência política e histórica são um dos indícios para se pensar a criação de vínculos identitários. Um determinado grupo étnico consciente de seu desempenho social, econômico, político e cultural é levado a questionar o quanto participativa tem sido sua atuação em sociedade, levando a identificar as diferenças entre o seu grupo e os demais.

Bibliografia

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre a negritude. Carlos Moor (org.). Belo Horizonte: Nandyala, 2010.

FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUFBA, 2008.

KI-ZERBO, J. "Introdução Geral" in História geral da África: I. Metodologia e pré-história da África - coord. Do vol. J. Ki-Zerbo. São Paulo: Ática: [Paris]: Unesco, 1982.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004. Disponível em: https://arquivopublicors.files.wordpress.com/2013/04/2013-04-10-diretrizes-curriculares-nac-educ-relac3a7c3b5es-etnico-raciais.pdf

MOREIRA, Marcio de Araújo. Análise do Impacto da Lei 10639/2003 No Exame Nacional do Ensino Médio de 1998 A 2013. 2015. 111 f. Dissertação (Mestrado em Relações Raciais) - PPRER - CEFET-RJ.

MUNANGA, Kabengele. Negritude. Usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012

[1] Carlos Moore nos conta que apesar da dominação entre os povos ser algo comum na história este fato não foi um fenômeno exclusivamente pautado na questão da raça, mas na modernidade a dominação foi traduzida como um problema tipicamente racial. CÉSAIRE, Aimé Discurso sobre a negritude. Carlos Moor (org.). Belo Horizonte: Nandyala, 2010. Pag. 8.

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* Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. e Integrante da Coordenadoria da Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação.


A Lei Feijó como a "Lei da Liberdade" e a ilegalidade da Escravidão no Brasil do século XIX

Lucimar Felisberto dos Santos*


Na última sexta feira (01/05), a professora Lavini Castro e eu fizemos no Instagram da @Afroiálogos uma Live sobre a Lei Feijó. A Live foi a primeira do mês de Maio que pautamos tematizar as leis anti-tráfico e abolicionistas.

No caso desse debate, orientamos nossos argumentos a partir de uma pesquisa feita por Aline Freitas, apresentada como Trabalho de Conclusão do seu Curso de Direito, defendido na Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco.

O título do trabalho é "A lei de 1831 e os caminhos da liberdade através do judiciário no século XIX". Logo na introdução, Aline deixa claro sua problematização, hipótese e metodologia. Fazemos questão de citá-las por permitir a visualização do exato fio que conduziu a estudante de Direito.

O problema apresentado à banca foi o seguinte: como pessoas escravizadas, depois da proibição do tráfico, se utilizaram da Justiça Imperial como plataforma para garantirem a sua liberdade? As hipóteses defendidas eram que as pessoas escravizadas atuaram de maneira contundente para pressionar internamente pela abolição da escravidão e que o Judiciário foi um dos palcos dessa luta. A análise bibliográfica foi a metodologia utilizada por Aline.

Ao longo da tese, a graduanda analisou os principais aspectos da escravidão brasileira, tanto por dar destaque ao seu caráter mercantilista quanto por ressaltar a sua política de alforria. Interpretou o contexto de produção da lei e as formas de apropriação de seu texto por escravizados que fugiam aos objetivos dos legisladores do Império do Brasil, uma vez que eram encontradas nele brechas que abriam caminhos para liberdade. 

Aline Freitas também acompanhou o desfechos dos africanos apreendidos na condição de carga ilegal, identificado, a partir de então, como "africano livres".

A interpretação de Aline Freitas ecoa análises de recentes estudos que vêm chamando atenção para esse tipo de luta escrava pela liberdade: seria um outro ponto de pressão.Sabemos que o Governo Regencial teve que enfrentar a pressão inglesa para a extinção do tráfico negreiro internacional. 

As motivações para a pressão inglesa podiam ser as mais variadas: por razões humanitárias, por desejar expandir o mercado consumidor para seus produtos ou mesmo para tornar mais competitiva a produção de sua indústria açucareira nas Antilhas.

Com esse sentido, diversos acordos foram a assinados entre o Brasil e a Inglaterra para limitar o alcance e a abrangência do tráfico negreiro. 

Acordos e leis que foram lidos como "leis para inglês ver", tanto pela sua inaplicabilidade quanto por constituírem parte da política lenta e gradual definida pelo governo imperial brasileiro como estratégia mais adequada de extinguir a Escravidão.

Sobretudo no século XIX, o ordenamento jurídico brasileiro deu suporte e legitimou à dinâmica lenta e gradual. 

Entretanto, a historiografia, e o Direito, recuperam esse mesmo ordenamento como um vetor de liberdade, destacadamente para pessoas escravizadas ilegalmente. 

O alto número de pessoas escravizada ilegalmente neste período fica evidente por conta o galopante crescimento do fluxo de entrada de africanos no Brasil após a Lei de 1831. Sobretudo por conta das incertezas e expectativas quanto ao fim definitivo do tráfico negreiro. Esse seria o caminho que levaria a Lei de 1831 ser transformado, na segunda metade do século XIX, em fundamento das ações de liberdade impetradas em nome dos denominados "africanos livres".

Como já deve ter ficado claro, receberam a denominação acima os africanos apreendidos no combate ao tráfico ilegal na primeira metade do século XIX. É importante ressaltar que para não serem submetidos à escravização ilegal e terem sucesso nas ações e liberdade era preciso que comprovassem a "boçalidade" e certas marcas corporais diante de uma comissão mista. Uma das principais característica de um "boçal" era o desconhecimento da língua portuguesa. 

Uma vez entendidos como produto do tráfico ilegal, os africanos e as africanas ficavam sob a "tutela" do Estado. Encaminhados ao Juízo da Ouvidoria, eram destinados, "para sua proteção", a estabelecimentos públicos a fim de receberem educação e disciplina por meio trabalho. 

O excedente tinha como destino o Juízo de Órfãos e, "para não ficar abandonado", era leiloado e arrematado por particulares. Todos recebiam um pingente que distinguia a nova condição. Os arrematadores ou tutores ficaram, por uma instrução publicada em 29 de outubro de 1834, obrigados a sustentar e cuidar dos arrematados. Podiam com eles firmar um contrato de trabalho. A instrução previa ainda o pagamento de um módico salário, que deveria ser depositado junto ao Juízo de Órfãos.

Como se vê, a lei de 1831 inaugura uma fase de práticas ilegais de escravizar. Uma vez que, como produto do tráfico ilegal, um número significativo de africanos aportaria no Brasil clandestinamente, e seria, ilegalmente, transformado em escravos. 

Na prática cotidiana, muitos indivíduos "livres" eram percebidos e tratados socialmente como escravos. Mas muitos escravizados mudaram o seu sentido por transformar o fundamento jurídico da lei em argumentos para as suas Ações de Liberdade. 

Vale concluir esta reflexão destacando que, no Brasil, tanto a possibilidade de autoindenização quanto o acesso à Justiça Imperial responderam pelo considerável número de alforria escrava. 

Enfim, ainda que os ingleses não visualizassem os seus efeitos das leis anti-tráfico e abolicionistas, a pressão escrava pela abolição da escravidão transformava elas em "Leis de Liberdade".

Bibliografia:

CHALHOUB, Sidney, "Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (XIX)". In: Revista Social, n. 19 (2010); Dossiê: Racismo, História e Historiografia. Especialmente as páginas 46 - 51.

SANTOS, Lucimar Felisberto. A Negação da Herança Social: africanos e crioulos no âmbito de uma economia em expansão. Tese de doutorado defendida no Procrama de Pós Graduação da Universidade Federal da Bahia. 2013.

SILVA, Aline Freitas de Paula e; DANTAS, Ivo (Orient.). A lei de 1831 e os caminhos da liberdade através do judiciário no século XIX. 2019. 61 f. TCC(graduação em Direito) - Faculdade de Direito do Recife - CCJ - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Recife, 2019.

https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/37167

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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.


Os limites de atuação política dos parlamentares negros

*Lavini Castro

Podemos falar em limites de atuação política dos parlamentares negros? A política é feita de estratégias para inviabilizar projetos legislativos que atendam as demandas da população negra propostas por parlamentares negros?

Diante dessas questões fui ler a tese de Carlos Santana intitulada Racismo, instrumentos legislativos e antirracismo: uma história da trajetória de parlamentares negros no Congresso Nacional (1983 - 1991), para entender o quanto o campo político e todos os personagens e instrumentos que o compõem atuam diante de propostas políticas lançadas por parlamentares negros quando vem à tona a questão racial.

Lendo a tese entendi que existem sim, limites de atuação dos negros no campo político, mas tal limite não é uma questão do negro, não estamos no século XIX, ou início do século XX para acreditar na inferioridade do negro - ou isso ainda causa dúvida?! O limite de atuação é uma questão do próprio campo político, tradicionalmente masculino e branco, nesse ínterim racista também.

Tal limite esbarrar, por exemplo, em instrumentos institucionais que dificultam a aprovação de propostas legislativas que atenda as demandas dos negros, como foi o caso que ocorreu com o Deputado Federal Monteiro Lopes que nos anos anteriores a 1909 quando se consolida parlamentar, teve que enfrentar a uma junta legislativa que apurava e decidia se, de fato, um candidato, mesmo com maioria de votos, como era o caso de Monteiro Lopes, poderia ocupar o cargo de parlamentar. Ora se ele havia sido eleito por maioria de votos a junta legislativa acabava servindo de instrumento de manutenção de algumas tradições no cenário político.

Percebemos que não foi nada fácil, como ainda não é atuar no campo político um campo majoritariamente branco. Conforme nos conta Santana, os negros muitas vezes foram encarados como ousados por estarem concorrendo ou por serem parlamentares, sofreram como ainda sofrem ataques racistas, um bom exemplo informado pelo autor é a forma como os veículos de comunicação interagiram com a presença de parlamentares negros na história política brasileira. Muitos jornais e revistas procuravam induzir os eleitores a crer que uma pessoa negra não teria capacidade para ser membro do congresso nacional brasileiro, mas hoje a mídia ainda representa o negro enquanto diferente aquele cenário parlamentar, pois políticos negros são chamados de baixo clero, ainda se deixa vazar a inferioridade do negro nesse termo.

Contudo o autor também nos mostra o quanto foi orgânica a atuação de muitos candidatos negros no cenário parlamentar brasileiro. Entretanto certos cuidados precisam ser tomados com a questão da romantização de ver nos negros a postura heroica da causa negra. Um bom exemplo é a recente aparição publica do Deputado Hélio Lopes, conhecido como Hélio Negão ou agora Hélio Bolsonaro, que em nada se aproxima da trajetória política de Abdias do Nascimento, por exemplo, por não viabilizar as demandas sobre questões raciais em sua articulação política, ao contrário ao negar a necessidade de cotas para negros ou afirmar que o Brasil não tem racismo, pelo simples fato do Deputado ser aliado do atual presidente que é branco, como se a amizade entre brancos e negros acabasse com o comportamento racista, é uma prova de que nem todos os negros utilizam sua trajetória em prol da discussão da questão racial no Brasil.

A tese de Santana faz com que entendamos de que maneira a questão racial foi tratada no Congresso Nacional Brasileiro, principalmente por que procurava entender, por meio da atuação política de Abdias do Nascimento e de Benedita da Silva, o quanto eram como ainda são urgentes leis reparatórias em benefício do negro. Pudemos identificar, através do estudo desta tese, o quanto esses dois parlamentares combateram o racismo através de propostas de políticas públicas para a população negra no Brasil. A articulação que Abdias e Benedita propuseram ao longo de sua carreira política - Benedita ainda atua nesse campo - serviu de estratégia de avanço legislativo, que até então as leis eram "leis para a elite ver" (termo a alusão a célebre frase histórica: leis para inglês ver sinalizada por mim) que em nada chegavam a transformar a realidade da população afro-brasileira porque eram leis que serviam de instrumento de mediação e reforço das classes dominantes, como o próprio autor menciona:

"A primeira lei brasileira pós-abolição que, por penalizar o crime de preconceito racial, pode ser pensada no âmbito da organicidade de parlamentares negros, no Brasil, foi a Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951, conhecida como Afonso Arinos. Esta lei tornou crime o preconceito de cor, tendo sido enquadrada no Código Penal como crime de contravenção penal. Entretanto, não teve eficácia alguma, pois as penas em que uma pessoa estava sujeita, no caso da prática do crime de racismo, eram muito brandas" (SANTANA, 2018, pág. 42)

Portanto a necessidade da via parlamentar como campo de luta negra para efetivar propostas de lei em prol da população negra. A tese de Carlos Santana promove um estudo sobre as estratégias sobre a via parlamentar de políticos negros contribuindo para que possamos entender a Historiografia brasileira sobre a História Social do Parlamento Brasileiro, "não só sob uma ótica dos deputados brancos, mais, sim, dando luz à atuação de vários Parlamentares negros no poder Federal, desobstruindo certa invisibilidade sobre a sua atuação" (SANTANA, 2018, pág. 291)

Bibliografia

Santana, Carlos. Racismo, instrumentos legislativos e antirracismo: uma história da trajetória de parlamentares negros no Congresso Nacional (1983 - 1991). 2018. 463 f. Tese de Doutorado em História Comparada pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2018.

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*Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. e Integrante da Coordenadoria da Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação. 


Movimento Negro no Brasil

Lucimar Felisberto dos Santos*

Alguma vez você já ouviu falar no MOVIMENTO NEGRO? Se sim, saber da existência de ações coletivas organizadas por pessoas que lutam contra o racismo e por direitos para a população negra te leva a que tipo de reflexão? Se não, saiba que ações deste tipo ocorrem desde sempre. Desde os movimentos de rebeldia permanente organizados e dirigidos pelos próprios escravos até os debates legislativos que aprovaram a lei número 10.639, passando pela fundação de um partido político nos anos 1930 (a Frene Negra) e uma companhia teatral nos anos 1940 (o Teatro Experimental do Negro).

Afrodiálogo do nosso Blog desta semana é sobre o Movimento Negro no Brasil. Confira e seja bem-vindo!


Nos últimos anos, o número de brasileiros a se autodeclarar negro cresceu de forma expressiva. O que pode representar uma importante conquista do Movimento Negro no que diz respeito à construção de uma identidade racial. No âmbito de um processo de identificação, coletivamente, foi elaborado um discurso tanto a favor da negritude quanto do resgate das raízes ancestrais. O ponto de partida foi a reavaliação do papel do negro na história do Brasil e, fundamentalmente, do discurso que sobre ele se produziu.

A criminalização do racismo, o direito às terras dos remanescentes dos quilombos e a publicação e implementação da lei 10.639 são resultados dessa que é uma luta política. Essas conquistas têm sido de fundamental importância no processo acima descrito. Essas conquistas políticas relevantes foram possíveis graças a inclusão de demandas da população negra na agenda política brasileira, tanto pela via da atuação parlamentar de membros dos movimentos negros quanto através da participação dos mesmos nos governos municipais, estaduais e federal, resultando de articulação política nas quais tiveram peso o posicionamento crítico da população negra. Neste sentido, foram e continuam sendo criados conselhos, assessorias e órgãos destinados a cuidar de questões específicas. que levem em cota o critério racial.

As questões específicas da população negra foi, de alguma forma, conectadas com a criação do Movimento Negro Unificado. O propósito da criação do MNU foi unificar as lutas, organizando as pautas dos grupos antirracistas em âmbito nacional. De acordo com Petrônio Domingues, "o MNU defendia as seguintes reivindicações 'mínimas': desmistificação da democracia racial brasileira; organização política da população negra; transformação do Movimento Negro em movimento de massas; formação de um amplo leque de alianças na luta contra o racismo e a exploração do trabalhador; organização para enfrentar a violência policial; organização nos sindicatos e partidos políticos; luta pela introdução da História da África e do Negro no Brasil nos currículos escolares, bem como a busca pelo apoio internacional contra o racismo no país." Apesar da perspectiva ampla proposta em 1978, o fator determinante de organização dos negros em torno de um projeto comum de ação seguia sendo a "raça".

O movimento negro no Brasil tem suas raízes na própria resistência à escravidão que se manifestava através de fugas, greves de fome e rebeliões e na participação de intelectuais negros no processo abolicionista. Para o período republicano (1889-2000), Petrônio Domingues fez uma análise da dimensão política do movimento. Ainda que reconheça a relevância da dimensão cultural, que recupera sentidos da lutas negras a partir da história das irmandades negras, dos terreiros de candomblé, da capoeira ou das escolas de samba.

Tratando então da evolução política do movimento negro, Petrônio Domingues identifica quatro fases:

Primeira: de 1889 até 1937 - sobressai a imprensa negra: jornais publicados por negros e elaborados para tratar de suas questões. Nestes se travava a batalha contra o "preconceito de cor", como se dizia na época. O movimento se qualificou com a fundação Centro Cívico Palmares, em 1926, e da sua sucessora, a Frente Negra Brasileira, em são Paulo em 1931.

Segunda: de 1937 a 1964 - destaque para a criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado no Rio de Janeiro, em 1944, e que tinha Abdias do Nascimento como sua principal liderança, aparecimento da União Cultural dos Homens de Cor (UCHC), que era dirigida por José Pompílio da Hora, no Rio de Janeiro, e a fundação da União Catarinense dos Homens de Cor (UCHC)d, em Blumenau, em 1962. A imprensa negra ganhou novo impulso, surgiram o Alvorada (1945), O Novo Horizonte(1946), Notícias de Ébano (1957), O Mutirão (1958), Níger (1960), em São Paulo; o União (1947), em Curitiba; o Redenção (1950) e A Voz da Negritude (1952), no Rio de Janeiro.

Terceira: de 1978 até os anos 2000. A partir do ano 1978, com a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), se tem de fato uma reorganização política as lutas organizando pelos mais diversos movimentos negros. Possibilitou a unificação de vários grupos antirracistas em âmbito nacional. O MNU resolveu não só despojar o termo "negro" de sua conotação pejorativa, como propôs que seu uso fosse utilizado com orgulho pelos ativistas, assim, o termo foi adotado oficialmente para designar todos os descendentes de africanos escravizados no país.

Outra proposta de ressignificação envolveu o dia 13 de maio, que passou a ser o Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo. O dia 20 de Novembro, data considerado como a de morte do líder quilombola Zumbi os Palmares, foi eleito o Dia Nacional de Consciência Negra. Reivindicando a inclusão do ensino da história da África nos currículos escolares, o MNU também passou a lutar por mudanças no âmbito educacional.

Bibliografia consultada:

DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo [online]. 2007, vol.12, n.23, pp.100-122.

PEREIRA, Amílcar Araújo. O mundo negro. Relações Raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro, Pallas/Faperj, 2013.

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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.


A importância das histórias do protagonismo negro para ressignificar a história e memória dos afro-brasileiros

Lavini Castro*

O nosso afrodiálogo de hoje pretende abordar o quanto é importante o reconhecimento da positiva imagem dos negros na história brasileira. Para tanto, partiremos do conceito de formação de memória coletiva, esquecimento e silêncio de Michael de Pollack, relacionando ao conceito de lugar de memória de Pierre Nora, para entender a importância das histórias de personalidades negras para ressignificação positiva da memória sobre o passado afro-brasileiro.

Notório já é a questão da ideologia racista que prescreveu os elementos constitutivos da identidade nacional brasileira valorizando mais categorias do universo branco do que indígena e negro. Disso resultou o silenciamento de determinadas circunstâncias históricas a respeito do protagonismo negro em nossa sociedade.

O negro foi agente de sua história, mas tal agencia não repercutiu em narrativas históricas até mudanças ocorridas na historiografia brasileira, a partir da década de 80. Muito se falou sobre a história do negro, mas pouca visibilidade havia sido dada ao seu protagonismo, até porque voltando ao passado percebemos que ao oferecer a todos os elementos étnicos raciais o sentimento de uma mesma identidade nacional, se viu privilegiar a cultura de raiz europeia, branca e cristã em sua mais enfática forma, como bem nos lembra CHAUÍ uma sociedade de "referenciais unificadores como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Justiça, a Igualdade, a Nação" (CHAUI, 2014, p.118) seladas pelo crivo europeu.

De acordo com os contemporâneos de Michael Pollak memória seria a operação consciente e coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer guardar. A memória define e reforça as fronteiras de lembranças entre os grupos. Então se referir ao passado é manter os grupos coesos. Os afro-brasileiros representam uma coletividade que enquanto tal são representados na memória histórica de nossas narrativas e registros escritos.

Entretanto, por muito tempo se exaltou uma história com base na democracia racial, num primeiro momento, já num segundo momento observa-se o mito de tal democracia, mas ainda assim se coloca o negro enquanto sujeito que desejava embranquecer não só no aspecto da aparência física como no compromisso com a ideologia racial branca. Tais registros ajudaram a perpetuar uma versão da história, versão esta que sugere que o negro foi aquele que negou sua origem, culturas, tradições, crenças... Possivelmente tais narrativas acabaram impedindo que a maioria dos afro-brasileiros observasse de forma crítica sua situação social, política, econômica e cultural, ou seja, foram impedidos de criar vinculo positivo com seus lugares de memória.

Segundo Pierre Nora lugar de memória é um ponto de referência à história e cultura de um determinado grupo étnico. Seriam os monumentos como. por exemplo, o patrimônio arquitetônico, as paisagens e datas, os personagens, as tradições e os costumes de uma sociedade. Portanto os registros históricos e manifestações culturais, datas comemorativas significam um lugar de memória. Sendo assim, resgatar a história do negro por meio de dar visibilidade narrativa ao protagonismo de determinados sujeitos históricos, reconhecidos como personalidades negras pela notoriedade de suas ações sócias é trazer a luz novo olhar sobre a história dos afro-brasileiros.

Para Pollack (1989) os elementos que constituem a memória individual ou coletiva seriam os acontecimentos vividos pessoalmente, ou por tabela. Assim experienciar através das narrativas de protagonismo negro, contando a história de uma personalidade negra é provocar, é criar imaginário positivo e sentimento de integração de grupo do qual sentimos fazer parte. De acordo com Pollack (1989) a noção de pertencimento ocorre pela socialização que projeta ou promove identificação entre as pessoas; seria o caso de herdar uma memória, por exemplo. Ouvir, ler, conhecer histórias que revelam o protagonismo negro é sentir fazer parte com orgulho da história de luta e resistência negra.

Numa sociedade, como afirma Pierre Nora, que tende a reconhecer indivíduos idênticos, influenciados pela memória oficial hegemônica que oculta a diversidade das experiências vividas pelos grupos, os lugares de memória seriam os "sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo" (NORA, 1993, p. 13). Num sentido simbólico, ouvir, ler, conhecer histórias que revelam o protagonismo negro é garantir experiência de recordação positivamente à história dos afro-brasileiros.

Acionando de forma crítica nossa memória sobre a maneira como até então havia sido contada a história brasileira, observamos o quanto se deixou de referendar determinadas personalidades negras por conta de um caráter unificador e hegemônico atribuído à história, todavia resgatamos a memória negra que mesmo em condição de suspeita levou a história a perder crédito cristalizador, quando novas versões da história são apresentadas sobre o protagonismo negro.

Bibliografia

  • CHAUÍ, Marilena. Crítica a ideologia. In: CHAUÍ, Marilena. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. São Paulo: Autêntica Editora, 2013.
  • NORA, Pierre. Lugares de Memória. Projeto História, n.10, 1993.
  • POLLACK, M. Memória, esquecimento e silencio. Estudos Históricos, n.3, 1989.

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* Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. e Integrante da Coordenadoria da Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação.


Covid-19 e a Necropolítica

Lucimar Felisberto dos Santos*

Lavini Castro**

Estudos sobre o ritmo de transmissão do coronavirus registram que a população negra é bem mais infectada do que a de brancos. Por exemplo, na Louisiana mais de 70% das vítimas de covid-19 eram afro-americanos. A tendência se repete em regiões dos Estados Unidos como Chicago e Milwaukee.

Ainda que a pandemia não tenha atingido o pico de sua transmissão no Brasil, dados como este nos faz refletir sobre a situação da população negra brasileira diante da conjuntura social, política e econômica em relação ao avanço da contaminação pelo covid-19. Destacadamente por ser ela que constitui os grupos de pessoas então em vulnerabilidade social, pessoas em situação de rua, moradores de comunidades e favelas e trabalhadores informais.

Neste contexto cabe perguntar: por que seriam os negros o grupo racial mais vulnerável em contextos de saúde pública em casos de epidemias e pandemias? Teria isto relação com o que Achille Mbembe conceituou de Necropolítica?

No caso, NECROPOLÍTICA seria a estratégia política do Estado que escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Assim, podemos dizer que quando o Estado deixar de formular políticas públicas que garanta à população negra brasileira acesso a seguro saúde, condições de comprar recursos básicos à sobrevivência ela a condena a morte. Soma-se a isso, a falta de acesso à água e rede de esgoto.

De acordo com os dados estatísticos do Data Favela publicados em 24 de março deste ano, no Folha de São Paulo, 72% dos moradores de favela, em sua maioria negras e negros, teriam rebaixado ainda mais seu padrão de vida "por não terem nenhum tipo de poupança". A pesquisa mostra que 32% desse grupo, que chega a somar 13,6 milhões de pessoas, terão dificuldades de comprar itens básicos, como alimentos.

Muitos dos trabalhadores afro-brasileiros (negros) ocupam empregos informais. Eles encontram dificuldades em ficar em casa para exercer o direito de evitar o contato social. Fatalmente, será esse o grupo que já não tem acesso ao álcool em gel e não terá a tratamentos ou testes, com mais vítimas fatais.

* Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.

** Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. e Integrante da Coordenadoria da Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação.



Vírus, Viroses, Coronavirus, e ebolavirus

Você já ouviu a expressão "virulência"? E "virulento"?

Lucimar Felisberto dos Santos*

Frases como: "Volta e meia o preconceito reaparece e com mais virulência"; ou

"A discussão sobre racismo nunca foi virulenta entre nós. Agora, felizmente, faz parte do quotidiano".

Em ambas as frases, as palavras fazem referencia à velocidade da propagação do ódio racial. Sem alarmismo ou pessimismo, invertendo a lógica da ordem de produção das ideias, e utilizando os conceitos para refletirmos sobre o rápido contágio de doenças virais, o afrodiálogo de hoje é sobre vírus, coronavirus e ebolavirus.

A palavra vírus vem do Latim vírus que significa fluído venenoso ou toxina.

Os vírus são organismos pequenos e bastante simples que são considerados seres vivos por alguns autores e não vivos por outros. Os vírus são organismos que não possuem célula (acelulares), sendo sua estrutura formada basicamente por proteínas e ácido nucléico.

As doenças causadas por vírus são também conhecidas como viroses, acometem várias pessoas todos os anos, e são bastante conhecidas pela população. A maioria das viroses causa sintomas como febre, mal-estar, dores no corpo, dores de cabeça e vômitos, dificultando, assim, um diagnóstico mais preciso do quadro clínico do paciente. Existem viroses que são relativamente simples, como os resfriados, e outras que desencadeiam quadros mais graves, existindo, até mesmo, doenças sem cura, como é o caso da Aids.

Como vem sendo muito noticiado nas mídias nos últimos dias, o coronavírus é uma família de vírus que causam infecções respiratórias. O site o Ministério da Saúde informa que o vírus foi descrito como coronavírus, em decorrência do perfil na microscopia, parecendo uma coroa. Isto em 1965, quase trinta anos depois do isolamento das primeiras espécies da categoria. A maioria das pessoas se infecta com os coronavírus comuns ao longo da vida.

Um tipo menos comum, o novo agente do coronavírus, foi descoberto 2019. Após casos registrados na China. Provoca a doença chamada COVID-19. Esse novo coronavirus - o COVID-19 - apresenta pelo menos três distinções dos tipos anteriores: o ritmo mais de transmissão, um grave comprometimento das vias respiratórias e a transmissão assintomática.

O comportamento do vírus em cada uma das regiões que ele acomete vítimas ainda vem sendo estudado. Mas o fato de ele, no memento, está presente em pelo menos 50 países dos cinco continentes intensifica o seu caráter pandêmico. Nisso o coronavirus se diferencia do ebolavirus. Por exemplo, o Ebola matou 11.310 pessoas na África Ocidental, a África Ocidental (Guiné, Libéria, Serra Leoa), entre 2014 e 2015, mas, para a sorte do resto do planeta, trata-se de um vírus que se propaga relativamente devagar.

De acordo com o site dos Médicos Sem Fronteiras, a primeira vez que o vírus Ebola surgiu foi em 1976, em surtos simultâneos em localidades do continente africano como o Nzara, no Sudão, e em Yambuku, na República Democrática do Congo, em uma região situada próximo do Rio Ebola, que dá nome à doença. O Ebola pode ser contraído tanto de humanos como de animais. O vírus é transmitido pelo contato com o sangue, secreções respiratórias ou outros fluidos corporais de pessoas ou animais infectados e provoca uma febre hemorrágica. Morcegos frutívoros são considerados os hospedeiros naturais do vírus Ebola.

Ainda de acordo com o site, em algumas áreas da África, a infecção foi documentada por meio do contato com chimpanzés, gorilas, morcegos frutívoros, macacos, antílopes selvagens e porcos-espinhos contaminados encontrados mortos ou doentes na floresta tropical. A taxa de letalidade do vírus varia entre 25 e 90%. Por exemplo, em uma epidemia de ebola registrada morreram quase 4,5 mil pessoas, de um total de quase 9 mil infectados.

A epidemia do ebolavirus se restringe ao continente africano. As pessoas diagnosticadas com a doença fora do continente ou a importaram, ou seja, contraíram em solo africano e apresentou os sintomas ou nos Estados Unidos ou na Europa, ou tratavam de profissionais da saúde que foram infectadas durante o atendimento a um doente.

Ainda nos dias de hoje o Ebola preocupa enormemente as autoridades de saúde de países do continente africano. Por causa da taxa de letalidade, chega a preocupar mais do que o coronavirus. Ambas as epidemias representam desafios para países africanos, sobretudo para aqueles passaram ou passam por conflitos armados.

De acordo com uma matéria publicada na revista EXAME em 12 de agosto de 2019, já existe uma vacina experimental sendo utilizada no combate ao vírus ebola no Congo desde 2018, entretanto " ainda não haviam registros de tratamentos efetivos que pudessem agir de forma reativa contra o vírus. Ou seja, enquanto a vacina apenas ajudava a prevenir a infecção, não havia uma resposta médica eficiente para tratar os pacientes que já haviam contraído o vírus".

Infelizmente, os grandes empresários das grandes indústrias farmacêuticas ainda não demonstraram interesse em investir na cura da febre hemorrágica causada pelo vírus Ebola talvez por ser uma doença de rara aparição e possuir um foco regional em países africanos de baixíssima renda.

A virulência dos impactos decorrentes da pandemia da COVID-19 está agora no centro de todos os debates sobre emergência de saúde, em dezenas de países dos cincos continentes, a reflexão sobre a dupla situação crítica dos africanos finaliza esse nosso afrodiálogo.

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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju. 


Piadas Racistas

Ei prof fique de olho!

Lavini Castro*

O Racismo Recreativo é um conceito cunhado por Adilson Moreira, Professor Doutor pela Universidade de Harvard em Direito Antidiscriminatório e colunista da editoria de Justiça da CartaCapital. Segundo o autor Racismo Recreativo é um humor que disfarça um comportamento hostil às minorias raciais. Foi uma nova forma do racismo sobreviver diante as novas circunstâncias sociais em que as minorias estão se apropriando de discursos de empoderamento e devolvendo-os em formas de cobranças ao Estado e sociedade brasileira. 

O racismo está sendo o tempo todo posto em evidências e para sobreviver precisa ser disfarçado. Por ser um discurso afinado ao comportamento de ódio, o racismo se adequou e se modelou em diversas formas, uma delas é a forma de racismo recreativo como bem descreveu Adilson Moreira.

A mensagem da brincadeira, ou piada racista comunica-se o desprezo, o preconceito, a discriminação, mas há nessa situação uma maneira de permitir o comportamento hostil por meio da desculpa, de que o que foi feito não foi por tal intenção. Ainda corre-se o risco de se criticar a vítima por ela ser tão crítica a uma simples piada.

Segundo Adilson Moreira o racismo recreativo é uma política cultural que utiliza o humor para expressar hostilidades em relação a minorias raciais.

Ao disfarçar hostilidades por meio de uma brincadeira ou pelo humor propaga-se o racismo e mantem-se uma imagem positiva de quem fez a piada, pois não havia intenção de ofender se era somente uma brincadeira (assim pensam aqueles que se identificam com as brincadeiras de mal gosto/porque não dizer racistas) Por outro lado, qualquer desentendimento e cobranças do ofendido são muitas vezes identificados como um comportamento excessivamente crítico, por vezes raivoso por não entender a brincadeira. Muitas vezes as vítimas que reagem a brincadeira racista são descritas como agressivas por não entenderem a piada, porém o tom do  humor esconde a intenção consciente ou não de hostilidade.

O humor racista tira a ideia de que haja, de fato, um problema social, sendo um problema de quem interpretou "mal" a piada, contudo o humor é uma forma de discurso carregado de valores sociais. Então por meio da cordialidade desse humor ácido se reproduz estigmas, preconceitos, discriminações que legitimam a estrutura racista de nossa sociedade.

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* Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. e Integrante da Coordenadoria da Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação.  


Poder exercer meu direito de ser negro desde a raiz dos cabelos

Lavini Castro*

Mais uma vez o Programa BBB criou polêmica e desmascarou nosso racismo à brasileira. No ano passado o problema colocado em questão, no BBB19, dizia respeito à religiosidade de um dos participantes, que professava uma religião afro-brasileira, em que outros "brothers" tinham feito um comentário de cunho intolerante à diversidade religiosa que existe em nosso país. Isso não é uma novidade em nossa história sociocultural. As religiões conhecidas como umbanda e candomblé são alvo de preconceitos há tempos registrados nas páginas dos noticiários e inquéritos policiais, sendo alvo exclusivo de ações do próprio estado, nas décadas de 40 a 50, como foram inúmeros casos de batidas policiais nos terreiros e centros espíritas (nome que começou a ser adotado, estrategicamente por pais e mães de santos para serem melhor aceitos pela sociedade brasileira - o que, para época, não adiantou muito)

Tal fato foi muito comentado nas redes sociais do ano passado e o mesmo vem ocorrendo nesta temporada do BBB20, mas agora o objeto em questão é o cabelo crespo/cacheado.

Mas vou aproveitar mais uma vez a ignorância aliada a maldade que existe em nossa sociedade para, como bem nos colocou Nilma Lino Gomes ser uma pequena referência de movimento negro educador para aqueles que me cercam, compartilhando neste post uma parte de minha dissertação de mestrado em que analiso a questão da intolerância religiosa e alguns de seus efeitos para a relação professor/aluno.

"O episódio de intolerância teria ocorrido após dois participantes negros terem se emocionado com a música "Identidade" do cantor Jorge Aragão e outro participante branco ter comentado que teria sentido um arrepio estranho quando olhava os participantes negros cantarem a música

A reportagem de o globo.globo.com nos dará mais elementos para reflexão, vejamos:

Um dos episódios que geraram revolta nas redes sociais ocorreu no último domingo, enquanto os confinados Rodrigo França e Gabriela Hebling, ambos negros, escutavam a música "Identidade", de Jorge Aragão, emocionados com os versos "Temos a cor da noite/ Filhos de todo açoite/ Fato real de nossa História". O participante Maycon Santos afirmou ter sentido um "arrepio estranho".

- Cumprimentei (a Gabriela e o Rodrigo), conversei e, de repente, senti um arrepio. Começaram a tocar umas músicas esquisitas. Olhei para os dois, num sincronismo legal. Achei legal, juro por Deus. De repente, comecei a olhar e escutar uns negócios. "Não faça igual a eles." Aí veio Jesus Cristo na minha mente. "Se fizer igual a eles, eles ganharão mais força". Eu não sou doido - afirmou Maycon. (KAPA, Raphael. Comentários no BBB levam a inquérito policial, e especialistas apontam que ocorreu racismo. 2019 site: oglobo.globo.com/sociedade/comentarios-no-bbb-levam-inquerito-policial-especialistas-apontam-que-ocorreu-racismo-23445766. Acesso 16/02/2019).

O questionamento trazido na reportagem de oglobo.globo.com por Alexandre Marques, professor de Filosofia da UERJ, além de pastor presbiteriano afirmam ser comentários discriminatórios e lança a pergunta: "Qual o significado de Jesus numa fala dessas?" Pois para ele não é necessário criar concorrências ou demonizações para enaltecer Jesus, nesse caso fica nítida a visão preconceituosa perpassando o olhar do jovem Maycon, colocado aqui como uma representação social dos referenciais culturais negros que não estão atrelados à visão cristã.

Em outro momento dentro do programa BBB 2019, outro fato também pode ser caracterizado como intolerância religiosa. Uma participante branca diz ter medo de um dos participantes e afirma:

- "Não, eu tenho medo de eu ser líder e mandar o Rodrigo para o paredão. Ele mexe com esses trecos aí. Ele fala o tempo todo desse negócio de Oxum deles lá. Eu fico com medo disso tudo - afirmou Paula, que foi aconselhada por outra participante a não fazer esse tipo de comentário, mas continuou: - Eu não sou (preconceituosa), não. Nosso Deus é maior". (Kapa, Raphael. Comentários no BBB levam a inquérito policial, e especialistas apontam que ocorreu racismo. 2019 site: oglobo.globo.com/sociedade/comentarios-no-bbb-levam-inquerito-policial-especialistas-apontam-que-ocorreu-racismo-23445766. Acesso 16/02/2019).

Sabemos que milhares de jovens assistem ou escutam comentários sobre esses programas de TV, sendo fundamental trazer tal realidade para ser debatida em sala de aula e ouvir o que os jovens estão retendo desses programas, que acabam trazendo a possibilidade de discutir sobre a diversidade.

Nesse sentido, Gomes (2008) comenta sobre uma nova geração, ainda em fase de maturação, mas presente, de professores sensíveis a causa da diversidade. Contudo, para alguns professores determinados temas são ainda tabus para serem trabalhados em sala de aula. Em conversas informais com professores, pergunto sobre por que não trabalhamos determinadas temáticas como homossexualidade, pessoas trans ou religiões afrobrasileiras e alguns professores comentam não quererem causar enfrentamentos com famílias e direção escolar.

Para Gomes (2008), os profissionais sensibilizados com a causa da diversidade são aqueles que possuem uma trajetória de vida relacionada a algum movimento social, mas creio na relação mais próxima com o tema como um parente que viveu o problema social e o professor viveu de perto o drama e por isso tem alguma afeição à determinada causa. A solidariedade pode surgir também quando aquele que mesmo sem sofrer com a questão do preconceito e da discriminação, como também da exclusão e da pobreza, se sensibiliza com a dor do outro e da desigualdade presente na sociedade. Por isso, independente da raça ou religiosidade, um professor pode se sensibilizar com a temática do racismo e atuar na sala de aula como um agente na busca de uma educação voltada contra esse processo. Como também há membros de igrejas católicas e evangélicas que não comungam com as posturas do racismo religioso presente nos grupos religiosos cristãos fundamentalistas".

"Como vimos anteriormente, o processo de aprendizagem deve obedecer a uma postura ética do profissional da educação que não hierarquize as diferentes culturas e histórias inibindo a construção da dicotomia melhor X pior nesse âmbito. A criança indígena ou descendente de indígena e a criança afro-brasileira precisa ter sua história contada de forma a valorizar seus grupos e suas culturas também valorizadas para se sentir tão importante quanto uma criança branca descendente de imigrantes europeus. Para que isso aconteça, há necessidade de se desmistificar a ideia de inferioridade que intercede nossa interpretação ao pensarmos nas diferenças quando os atributos biológicos e culturais brancos são catalisadores referenciais de positividade.

Para Gomes (2005), a educação não pode mais escapar das cobranças de diferentes grupos sociais e raciais sobre a inclusão e valorização da diversidade, até porque a diversidade não é somente apreendida como é pauta política dos grupos minoritários na busca por direitos sociais. A escola é um facilitador na construção de conscientização por uma sociedade mais justa na inserção dos diferentes grupos e o respeito as suas demandas".

Neste ano o BBB trouxe nova questão que volta a escancarar o comportamento racista em nossa sociedade. Se antes foi a religiosidade afro-brasileira, este ano esta sendo o cabelo crespo. De fato, quem não tem cabelo crespo ou cacheado não entende a função do pente garfo e ficaria ao mínimo curioso com tal instrumento. Mas o que salientamos aqui não é a curiosidade nata do ser humano em estranhar algo diferente, não é isso. O que queremos sinalizar é o comportamento racista diante nos comentários, as risadas para ridicularizar... Coisas que nós negros entendemos muito bem!

A frase que causou revolta na comunidade negra foi dita pela participante Ivy Moraes em tom de pergunta: "quem penteia o cabelo com um trem desse?" Ela se referia ao pente-garfo usado pelo participante negro Babu Santana (único negro do BBB20) pergunta que levou outros participantes ao riso. Você entendeu a piada? Hummm, o negro virou piada mais uma vez.

Quem se identifica com o comentário acima, vai dizer que ela não fez por mal e que era só uma brincadeira, mas piada que ofende pessoas negras não é piada, o mesmo serve para brincadeira. Contudo as piadas e brincadeiras seguem mais refinadas acobertadas pelo rótulo de piada, brincadeira, desculpas de que não foram por mal, que não quiseram ofender, mas a sociedade brasileira não quer discutir o racismo, já apelidou até de mimimi. As ignorâncias continuam sem se sentir nenhum tipo de constrangimento. O cabelo crespo, uma das marcas registradas da etnia negra, historicamente segue como objeto de escárnio alheio. Dúvidas carregadas de esteriótipos como: Será que nós negros lavamos o cabelo? Como conseguimos pentear nossos crespos? São certezas maliciosas de nossos algozes racistas. Por que não nos deixam assumir nosso direito de viver nossa negritude com dignidade? Qual é o medo deles?

Vão dizer que a participante do BBB20 não foi racista, mas quem assume o fato? Essa será apenas mais uma amostra para as pesquisas que apresentam como nossa sociedade é racista.

Dissertação de Mestrado: Leituras evangélicas frente ao estudo da cultura e história do negro na educação brasileira / Lavini Beatriz Vieira de Castro.- 2019. Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca , 2019.

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* Mestre em Relações Étnico Raciais, Membro Pesquisador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. e Integrante da Coordenadoria da Linha de Pesquisa do LHER/UFRJ: Fundamentalismo religioso, diversidades e laicidade no ambiente escolar: os desafios para a escola e os profissionais da educação. 


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