A “cultura legal”, o antirracismo e cidadania brasileira em uma perspectiva histórica
Enquanto uma mulher negra oriunda das classes trabalhadoras que, para obter titulação acadêmica, precisava propor uma análise científica com um considerável grau de sofisticação teórica e metodológica, desde o meu ingresso nos programas de Pós-Graduação a minha escolha foi por problemas e objetos de pesquisas que envolveram entender aspectos de minha própria experiência. Assim, minha primeira questão-problema levada a um programa de pós-graduação de uma universidade foi sobre os aspectos da economia dos escravizados. Meu objetivo foi entender a possibilidade de indivíduos cativos terem uma margem de mobilidade sócio-econômica. Tinha conhecimento, por exemplo, da possibilidade do pelo acúmulo de pecúlio pelos cativos que, por vezes, desdobrava ou na aquisição da própria alforria ou a da de um membro de sua família ou na melhoria das condições de cativeiro.
Em verdade, ao longo das pesquisas para a defesa de minha dissertação, as questões envolvendo História e Direito passaram a fazer parte do meu repertório de reflexões a partir da tentativa de interagir com o conceito de "cultura legal" cunhado pelo professor Sidney Chalhoub (1990). As análises do historiador colocavam em xeque as teorias generalizantes da escola sociológica paulista. Partiam do princípio de que os subalternos são sujeitos de sua história, via sentido político nas experiências dos dominados. A perspectiva teórica que tinha por pressuposto a participação dos trabalhadores numa "cultura legal" dialogava com uma das obras do historiador inglês Eduard Thompson (1987), que analisou as noções de "lei", "justiça" e "Direito" no contexto de produção da chamada Lei Negra inglesa de 1723.
Chalhoub foi um dos pioneiros em proceder a análises da documentação produzida pelo judiciário brasileiro para evidenciar que, apesar da situação de opressão vivenciada nos anos de vigência da escravidão, homens e mulheres escravizados, libertos e os seus descendentes interpretavam a legislação de modo a fazer dela uso em específicas ações judiciais. São vários os historiadores e historiadoras que vêm se debruçando sobre esse tipo de fonte para dar destaque à agencia desses sujeitos. Assim, ressalta-se que, ainda que representado por rábulas ou advogados sensibilizados com as desigualdades raciais, já podemos definir como estratégia antirracista o posicionamento político dos subalternizados que, com argumentos jurídicos muito bem formulados, deixavam claro suas percepções políticas e a sua contrariedade com as desigualdades informadas pela sua condição racial. E esse inconformismo foi se tornando usual. De modo que, as pesquisas históricas demonstraram que pressionar o judiciário e questionar a escravidão judicialmente tornou-se algo habitual, uma das estratégias de luta pela liberdade e por acesso à cidadania.
E é preciso ressaltar que em alguns casos os juristas que os defendiam havia conhecido a escravidão. Foi o caso do rábula Luiz Gama que vivenciou tal experiência e do advogado André Rebouças, descendentes de mãe escravizada. Só para dar exemplos sobre quais tipos de demandas os escravizados podiam apresentar ao judiciário, lembro que entre os anos 1831 e 1888, mais de meio século, portanto, o Império brasileiro praticou um tipo de escravidão que pode ser considerada ilegal. Isso por que a Lei Feijó, promulgada em sete de novembro de 1831, determinou que todos os africanos que chegavam ao Brasil transportados em navios negreiros deveriam ser considerados "africanos livres", e reduzidos a escravos. Comprovar judicialmente essa condição jurídica diferenciada foi uma estratégia antirracista da "cultura legal" de muitos escravizados.
Do mesmo modo, a LeiRio Branco, promulgada em 28 de setembro de 1871 - aquela conhecida como a Lei do Ventre Livre -, entre outras determinações, tornava legal aquela mencionada prática de se acumular de pecúlio pelos escravizados. Interferia, portanto, na autoridade senhorial sobre a propriedade escrava, forçando os escravocratas a negociarem com o seu próprio cativo a sua liberdade. Esse tipo de transação resultou em centenas de ações judiciais de liberdade, tanto quando da impossibilidade de negociação ou como quando o escravizado percebia que essa se dava com prejuízo para a sua pessoa.
Essa perda da legitimidade social dos proprietários de escravizados foi destacada por Hebe Matos, e por outros historiadores que se dedicaram ao estudo do desmoronamento da escravidão. evidenciando o impacto das ações dos escravizados nesse processo. Em sua tese de doutorado defendida em 1993, que foi publicada como livro em 1995 com o título Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, a historiadora destaca certo silêncio sobre a cor dos indivíduos em documentações como os processos crimes e civis que pesquisava no Tribunal de Relações no Rio de Janeiro no século XIX. O que se relacionava, segundo seus argumentos, com uma redefinição dos padrões de dominação que se dava à época. Com a análise da documentação, a historiadora demonstra que ao contestar a ascendência que os senhores e ex-senhores tinham sobre eles, os escravizados dificultavam a reestruturação das relações de dominação pretendida para o pós-escravidão (MATTOS, 2004).
Ou seja, o antirracismo e a luta pela ampliação dos direitos cidadãos encontraram no Direito uma arena de luta mesmo quanto às querelas envolvendo indivíduos escravizados. O desafio imposto pelos negros escravizados para que o governo imperial colocasse fim à escravidão nas últimas décadas do século XIX e as suas conseqüências foram a chave para a leitura encontrada pela historiadora Wlamyra Alburquerque (2009). Nesse contexto, ela argumenta que estrategicamente consolidou-se um processo velado de racialização que passou a intermediar as intervenções estatais e as políticas governamentais. Ocorria que se conjugava uma linguagem que negava a existência da discriminação racial com políticas discriminatórias de fato. A historiadora chamou essa prática de "Jogos de dissimulação".
O historiador Flávio dos Santos Gomes e a antropóloga Olívia Maria Gomes Cunha (2007) reuniram especialistas das duas áreas de conhecimento para analisarem o mesmo período e produzirem uma reflexão sobre as formas de acesso à cidadania de uma massa de ex-escravos e homens e mulheres deles descendentes. Objetivamente, eles buscaram entender os embates e desafios colocados pela ordem legal que concedia a liberdade e a possibilidade de acesso aos direitos de cidadãos. O resultado foi uma coletânea que recebeu o título de Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Se o modelo de cidadania a que tinham acesso aqueles homens e mulheres foi considerado incompleto foi por conta de os especialistas entenderem que a forma de os ex-excravizados vivenciarem a liberdade nas relações de trabalho, nos mecanismos de participação política e nas estratégias de produção de subjetividade e construção de identidade eram impactadas por aquele processo de racialização.
Os estudos de acadêmicos preocupados com a desestruturação do racismo e com o acesso à cidadania plena pelas parcelas de negros e de negras da nossa sociedade vêm demonstrando outras dimensões de uma "cultura legal" aplicada às lutas antirracistas ao longo de nossa história. Por exemplo, além de usar os meios judiciais para a conquista da liberdade por meio de ações judiciais, os escravizados tentaram que fossem aprovados estatutos para o funcionamento de irmandades e outros tipos de associações. Nos mundos da liberdade e do trabalho livre e assalariado não foi diferente. A historiografia vem trazendo a tona um histórico de luta por direitos de cidadãos, como melhor condição de moradia, trabalho e renda, direito as praticar religiosas e culturais. Um extenso repertório de luta de libertos e de homens livres de cor que, para atuarem a partir de instituições reconhecidas pelo Estado brasileiro, associavam-se e esforçavam-se para tornarem legal a sua organização associativa (DOMINGUÊS, 2014). O que não foi uma tarefa fácil. Sabemos que para disciplinar os corpos e inibir as práticas culturais o Judiciário decidiu por criminalizar práticas culturais de origem africanas, além de criminalizar aquelas do cotidiano da população negras brasileiras, como o candomblé e a capoeira, respectivamente.
Essa luta antirracista pela plenitude da cidadania atravessa o século XX. O jogo mudou e ganhou nível de sofisticação a partir do entendimento de um setor do movimento negro que decidiu criar o Movimento Negro Unificado, que se tornou a expressão contemporânea dos movimentos negros. Esse seguimento entendeu que a prática da "cultura legal" deveria superar a estratégia de fazer uso das leis elaboradas no mais das vezes por legisladores racistas e lutar pela aprovação de leis que fossem elas mesmas antirracistas. Como resultados, temos as leis que tornaram o racismo contravenção e, depois, crime, a lei que institui as cotas raciais, as que regulam as terras de remanescentes de quilombolas e a Lei 10.639/03, que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Todas leis antirracistas por terem possibilidade de revisarem ou mexerem com a estrutura do racismo já consolidada.
É importante ressaltar que todas as ações coletivas e individuais, protagonizadas por negras e negras, que tiveram por intencionalidade questionar a situação de opressão a que estiveram submetidas as populações negras e, de alguma forma, denunciar o racismo são consideradas ações do movimento negro, inclusive aquela que garantiram a manutenção de irmandades, terreiros, associações, sindicatos. É imprescindível chamar atenção para o fato de que as populações negras nunca naturalizaram as diferenças raciais. O tipo humano subalternizado criado pelo pensamento social brasileiro no momento da estruturação das relações sociais foi questionado desde sempre como forma de se afirmar a humanidade.
Posso afirmar que parte significativa dos envolvidos no movimento antirracista acadêmico capitaneada por historiadores negras e negros está empenhada em evidenciar que as lutas protagonizadas por africanos e seus descendentes ao longo do tempo da escravidão e no pós-Abolição fazem parte de um movimento pelos direitos civis dos negros brasileiros. Ontem e hoje forçamos as instituições judiciais brasileiras para que sejam revistas as desigualdades raciais. Atualmente, entendemos que a implementação plena da lei 10.639/03 pela inclusão dos conteúdos da história e culturas dos africanos, afrodescendente e povos originários seja a arma mais eficaz de nossas batalhas, e estamos empenhados em ações com esse sentido. Não faltaram protagonismos aos negros e negras e precisamos incluir esse passado na história do Brasil. Ao refunda-la, confiamos na construção de novas subjetividades, na afirmação e empoderamento da identidade racial.
Referências Bibliográficas:
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das. Letras, 2009.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Cia. das Letras, 1990.
DOMINGUES, Petrônio. Cidadania por um fio: o associativismo negro no Rio de Janeiro (1888-1930). Rev. Bras. Hist., vol.34, n.67, 2014.
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. 2 ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.
THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. A origem da lei negra. Tradução de Denise Bottmann.Col. Oficinas da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.*
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Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.