Até que os leões tenham a sua História, os contos de caça glorificarão sempre o caçador!

01/10/2020

Por Lucimar Felisberto dos Santos*

Parte deste texto constitui conteúdo de uma palestra sobre os 130 anos da abolição da escravidão e sobre a memória e o legado das resistências negras que apresentei em um evento no Arquivo Nacional. Como a narrativa recupera parte de minha trajetória acadêmica compartilho enquanto matéria de nosso Blog. A reflexão foi organizada em torno do ditado africano que dá título à matéria. Fui conferir se realmente esse aforismo era reconhecido como tal, ou seja, como provérbio africano. Encontrei algumas variações do registro. O que é pertinente para o caso de ele ter mesmo aquela procedência, se fez oralmente boa parte de seu trajeto até chegar aos dias de hoje. Dizia um registro: Até que os leões aprendam a escrever os contos de caça, glorificarão sempre o caçado. Um outro: Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis nos contos de caça.

As reflexões acerca do leão e do caçador africanos serviram de "mote" para endossar a minha fala naquela ocasião, por eu acreditar que também o "13 de maio de 1888" pode ser pensado como um marco nas trajetórias de leões. Aqui me refiro a muitos africanas/os e aos seus descendentes que no Brasil se apropriaram das palavras de Joaquim Nabuco, que argumentou que não bastava acabar com a escravidão, mas era necessário também destruir as suas obras. Também àquelas/os que vêm buscando influir na historicidade legada daquele processo.

Os resultados têm sido fantásticos!

Intelectuais ativistas e acadêmicas/os negras/os, em sua maioria afro-brasileiras/os, acirraram os diálogos a respeito do impacto do racismo na experiência brasileira e sobre a atuação dos Movimentos Negros na luta pela superação das desigualdades no nosso país. Assim como ocorre por ocasião do 20 de novembro, em torno da comemoração da assinatura da Lei Áurea, vários eventos são organizados e "diálogo necessário" são pensados. Observa-se uma significativa participação de diversas categorias de intelectuais negras/os preocupadas/os em glorificar a memória e o legado das resistências negras. Muitas/os envolvidas/os em pesquisas que visam recuperar novas/os heróis comuns para protagonizarem contos de caça, entendido aqui como atos diversos de resistência.

Uma desses intelectuais, a professora Solange Rocha, da Universidade Federal da Paraíba, escreveu na apresentação do livro que registrou o resultado de sua tese sobre as gentes negras na Paraíba oitocentista um relato que ajuda a entender o sentido da reflexão que ora compartilho, diz o seguinte:

Esse livro é uma recusa ao silenciamento histórico-historiográfico. É um grito contra o amordaçamento da memória não apenas dos/sobre negros, mas desse país e de sua configuração étnico-racial-cultural. É uma resposta feita com muita competência, lastreada em uma sólida pesquisa documental, pacienciosamente elaborada, buscando agulha no palheiro, coletando fragmentos por vezes minúsculos, dando-lhes uma tessitura onde era possível, ou registrando-os apenas com indícios de uma trama cujas malhas foram esgarçadas pela ação do tempo.

Como se ver, aos leões de nossa categoria, foi necessário muito mais do que aprender a escrever para contar a nossa história! Tivemos de aprender fazê-lo dentro e a partir de rígidos códigos acadêmicos e, ainda que não a inventássemos, foi necessário uma metodologia criativa que acabou indo além desses códigos.

E, volto a dizer: os resultados têm sido fantásticos!

Vários estudiosos que fizeram balanços sobre a historiografia brasileira registraram que pelo menos desde os anos 1980 - e lembremos que essa foi a década do centenário da Abolição - a inclusão de novos temas na historiografia acerca da população escrava inaugurou um nova fase da pesquisa nesse campo. É inegável que o fenômeno tem a ver com ingresso dos leões na Academia! Por não nos furtamos de levar para os programas de pós-graduação as nossas questões particulares; os problemas que tinham a ver com a nossa própria história e ancestralidade. Daí contribuirmos enormemente para uma mudança no perfil dos sujeitos no imaginário acadêmico verificado não só no campo de pesquisa sobre escravidão.

No meu caso, a minha questão-problema inicial localizava-se nos "mundos do trabalho", queria respostas sobre a mobilidade escrava. Intrigava o conhecimento sobre a existência de mulheres negras forras com posses no Brasil escravista, muitas das quais proprietárias de escravos; sobre escravos urbanos com ofícios, qualificados para trabalhar em diversos setores da produção; sobre a ocorrência de altas taxas de alforria entre a população escrava urbana, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro. Daí o projeto de pesquisar e dissertar sobre o assunto.

Na Universidade Federal Fluminense, com a orientação da professora Martha Abreu, desenvolvi um trabalho de mestrado com o título: COR, IDENTIDADE E MOBILIDADE SOCIAL: crioulos e africanos no Rio de Janeiro. (1870 - 1888). Analisei as últimas duas décadas da escravidão. O trabalho teve como objetivo investigar as estratégias de africanos e crioulos, esses últimos os filhos de africanos nascidos no Brasil, tendo em vista seus próprios projetos de ascensão social. A pesquisa se deu a partir do resgate de algumas trajetórias de homem e mulheres daquelas naturalidades, escravos, libertos e livres. Pacienciosamente elaborada, como no caso descrito pela professora Solange, "buscando agulha no palheiro, coletando fragmentos por vezes minúsculos" procurei perceber os sentidos e os significados da mobilidade social para aqueles sujeitos em particular, não deixando de considerar a condição escrava de uma grande parcela.

Mas como pesquisadora das modalidades de escravidão socialmente praticado no Município Neutro da Corte nos oitocentos, é preciso destacar que ascender socialmente via a obtenção da alforria fazia parte de uma conjuntura cuja atividades econômicas eram complexas e intensas. Sendo a alta taxa de alforria uma característica importante da escravidão do Brasil. Por exemplo, 42% da população negra no Brasil, em 1872, era livre. Enquanto que, nos anos 1860, praticamente o mesmo período, nos Estados Unidos esse percentual era cerca de 16%. Aqui não estamos refletindo sobre o padrão de vida.

É importante ressaltar que as pesquisas deixaram claro que a concessão da alforria era uma política, que tinha a ver com a estratégia de controle dos senhores sobre os escravos - era uma forma de controle social da escravidão. Mas a política é um jogo, enquanto tal, envolve jogadores. O papel de homens e mulheres escravizados, africanos e crioulos, nos acordos políticos em torno da obtenção da alforria foi destacado na pesquisa, e não foram recuperados em fragmentos minúsculos.

No caso específico da cidade do Rio, em 1872, havia 274.972 habitantes, dos quais 226.033 livres (82,20%) e 48.939 escravos (17,7%). A população negra do Rio - escravos e pessoas libertas e livres de cor - somada, representava 44,4% do total. Se considerarmos apenas a população negra, a representação de livres era de 59,9% e a escravizada 40% escrava. Ou seja, em cada cinco pessoas de cor habitantes da Corte em 1872, três eram livres, duas escravas. È importante anotar que entre 1872 e 1885 um terço da população escrava urbana havia conseguido sua liberdade, destacadamente por conta de os escravizados serem os principais os responsáveis por indenizar os seus senhores.

Na conclusão de minha pesquisa de mestrado, ficou muito claro que a liberdade era o objetivo perseguido pela maioria dos escravizados na cidade do Rio de Janeiro, ou seja, a taxa elevada de alforria pode ser explicada pelo fato de que o tornar-se livre estava no horizonte das expectativas daquela população. Destacadamente para os que vivenciavam o cativeiro urbano que, de certa forma, usufruíam de "doses de liberdade" propiciadas pela característica da modalidade da prática social daquela modalidade de escravidão.

Para que os escravizados fossem capazes de executar as tarefas urbanas, foi necessário conceder-lhes mais autonomia. Na maioria das vezes, os escravos urbanos eram empregados em atividades "ao ganho". Eram chamados ganhadores aqueles trabalhadores que circulavam pelas ruas da cidade em busca de uma ocupação. Para que os seus cativos pudessem atuar nos mundos do trabalho urbano, os senhores faziam com eles uma espécie de acordo. Eles podiam viver "sobre si", ou seja, cuidando do seu próprio sustento e assegurando a sua própria moradia e, em troca, devia levar aos senhores, num tempo determinado "um acerto" (um valor previamente estipulados). Nas cidades, os escravizados eram empregados nos mais diferentes ramos de atividades, desde moço de pasto até operários em indústria. Eles podiam ser vistos pelas cidades carregando mercadorias, trabalhando como pedreiros, carpinteiros, sapateiros etc.

Fundamentalmente, o que ficou evidente com a pesquisa no mestrado foi a negação da condição escrava por parte da população negra. E, a partir desta constatação, elaborei um projeto de pesquisa e o submeti a programa de pós-graduação de algumas universidades. Foi aceito no da Universidade Federal da Bahia, onde desenvolvi a tese com o título de:

A NEGAÇÃO DA HERANÇA SOCIAL: Africanos e crioulos no mundo da Liberdade, do Capital e do Trabalho. Rio de Janeiro. (1870-1906)

O trabalho foi sendo definido ao longo da pesquisa. Acabei buscando novos e mais detalhados elementos sobre a situação histórica de trabalhadores africanos e crioulos. Como resultado, comecei a pensar na forma como eles atuaram na formação de um mercado de trabalho que ganhava forma para atender às demandas industriais de uma economia capitalista. Conforme conjuntura econômica verificada no Rio de Janeiro, nas últimas décadas do século XIX.

As mudanças nas relações de trabalho desde muito antes da assinatura da lei Áurea vem sendo o meu principal objeto de pesquisa desde então. Interessam-me as experiências sociais de trabalho que antecederam a formação de uma classe de trabalhadores livres e assalariados (que no Rio de Janeiro embaraçavam formas de relações de trabalho diversas e cabalmente estruturadas em lógicas forjadas nas relações escravistas); também o impacto da disseminação da prática de assalariamento e do status profissional em um ambiente no qual a maioria dos homens e das mulheres, mesmo os não escravizados, atuavam em "esquemas" de trabalho coercivos.

Só para dar um exemplo do que chamo de experiências sociais de trabalho e, assim, concluir esse afrodiálogo, vou rapidamente apresentar uma personagem chamado Maria Quitéria de Jesus. Eu a encontrei quando analisava os processos do acervo do Arquivo Nacional relativos àqueles trabalhadores que vislumbraram a oportunidade de legalmente mudar o rumo de suas experiências de trabalho. A reconstituição do vivido por essa mulher trabalhadora é um caso típico de possibilidade de se ter respostas, dada pelos próprios trabalhadores escravizados, libertos e livres, a partir da análise de fontes como os processos civis e criminais. No caso da preta, o documento registrava um processo que ela era a autora e fazia reivindicação de salários que considerava devidos.

Na verdade, ela era uma forra que havia sido moradora da cidade de Vassouras e teria vindo para o Rio de Janeiro em companhia de uma filha que era amásia de um certo Dr. Gabriel Diniz de Junqueira. O que sobreviveu de sua história e chegou ao acervo do Supremo Tribunal da Justiça foi justamente a série de documentos referente a uma ação de soldada datada do ano de 1862. A ação era fruto de um litígio com João Augusto Diniz Junqueira, filho do doutor, de quem pretendia receber importâncias em salários que deixaram de ser pagas por anos. É um rico registro histórico que pode ser contextualizado na conjuntura de mudanças que alteraram as atitudes econômicas. Que tiveram a ver com o próprio desmonte escravidão pelos diversos agentes sociais. O que a análise das documentações vem mostrando é que foi assim também no caso de homens e mulheres que nunca antes haviam sido imaginados como agentes de suas histórias. Também eles percebiam as possibilidades de mudanças conjunturais e atuavam de acordo com elas!

É um processo que envolve experiências de leões. As daqueles leões do passado, invisibilizados, e as dos criativos dos leões das atualidades que, após apropriarem-se de específicas tecnologias do conhecimento acadêmico atuam no resgate da memória e do legado de resistência daqueles!!!

Referências:

ROCHA, Solange Gente Negra na Paraíba Oitocentista: população, família e parentesco espiritual. Recife: PPGH/UFPE, 2007.

SANTOS, Lucimar Felisberto. Identidade e Mobilidade Social: crioulos e africanos no Rio de Janeiro (1870-1888). Dissertação, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2006.

_______________.Negação da Herança Social: africanos e crioulos no âmbito de uma economia em expansão. Tese, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, 2013.

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Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju. 

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