Será o historiador um intelectual mediador da cultura na sociedade ocidental contemporânea?
Por Lucimar Felisberto dos Santos*
O caráter fluido e polissêmico dos sujeitos envolvidos na produção e na mediação cultural foi destacado por Stephane Ramos Costa, refletindo a partir da categoria intelectual mediador. A ferramenta de análise foi cunhada pelas historiadoras Ângela de Castro Gomes e Patrícia Hansen e explorada no livro Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ações políticas, publicado pela editora Civilização brasileira em 2016. No contexto de renovação de sentido do conceito de intelectual, as autoras complexificam o conteúdo do termo para que ele dê conta de abranger personagens com posições de reconhecimento diferente daqueles tradicionalmente caracterizado por modelos explicativos deterministas.
Como se dedicava a uma pesquisa sobre experiências de educação popular no Rio de Janeiro entre os anos de 1887 e 1956, Costa buscou compreender alguns dos pilares no que tange ao ativismo de movimentos sociais negros, seja através de organizações associativas, ou sujeitos responsáveis pela realização de projetos educacionais. Notoriamente, ainda que as estratégias fossem capturadas nas ações coletivas de uma determinada instituição - no caso a Escola da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos - eram projetos individuais de homens como o professor José Cláudio Nascimento, e de professores e gestores daquela instituição religiosa, que eram compartilhados por uma comunidade. Daí a historiadora defender que,
A relação da categoria cunhada pelas historiadoras está em forte diálogo com os objetos mobilizados no material dissertativo pelo fato de José Cláudio Nascimento e os gestores da Irmandade do Rosário e São Benedito. Isto é justificado pelo fato de ambos os objetos tinham o intuito de disseminar a rede de sociabilidade intelectual entre os associados a seus projetos e fazendo circular seus respectivos produtos culturais. Outrossim, as práticas de mediação cultural objetivam a construção de memória por via das instituições escolares, uma tarefa muito difícil por se tratar de uma transmissão e compartilhamento de códigos, linguagens e conhecimentos (COSTA, 2020, p. 23).
Ou seja, de acordo com a perspectiva da análise, na relação que específicos agentes desenvolvem com um público composto por seus pares, disseminar uma rede de solidariedade, construir uma memória por via das instituições escolares e transmitir e compartilhar códigos, linguagens e conhecimentos seriam práticas sociais educacionais que lhe conferiria o reconhecimento como intelectual mediador. Não era outro senão esses os papéis desempenhados pelos homens e mulheres que a historiadora encontrou na documentação utilizada para produzir sua dissertação de mestrado com o título "Patrício negros: Experiências de educação popular no Rio de Janeiro (1887-1956)", defendida no Programa de Pós-graduação de História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Os patrícios negros foram definidos no trabalho de pesquisa por "individuais ou coletivos - que, apesar de terem posições políticas distintas, possuíam um o objetivo comum de uma verdadeira emancipação da população negra por meio da educação". Com esse sentido, a historiadora evidenciou projetos de homens e mulheres voltados para a produção de conhecimento ou para a produção de ideias cruzadas de interesses e sentidos de suas expectativas de mudanças da realidade social.
Os sujeitos da pesquisa, de muitas formas, distanciavam-se daqueles intelectuais que foram até mesmo considerados agentes da dominação capitalista. Analisando o assunto, também a partir do livro de Gomes e Hansen, Alex Fernandes Borges, argumentou que,
Não foi antes dos anos 1980 que o intelectual, como categoria de análise, emerge nos estudos sociais de um modo novo, integrado dentro da história cultural como relevante para se compreender o quadro geral das condições de produção político-sociais de ideias. Desde então, há um esforço de se compreender melhor essa figura como elemento fundamental da mediação cultural. Embora tais esforços possam ter resultado em um conceito polissêmico, fica decantado que o intelectual não pode ser entendido como o emissor supremo de conteúdos a receptores absolutamente passivos dentro de uma lógica dicotômica (2017, p. 37).
Os sujeitos da pesquisa de Stephane Ramos da Costa, portanto, enquadrar-se-iam na categoria de "Intelectual" que, de acordo com as autoras cujo ela e Borges estabelecem diálogo, pode ser definida como "incluindo homens e mulheres voltados para a produção de conhecimentos ou comunicação de ideias que estão, direta ou indiretamente, vinculados a uma possibilidade de intervenção sociopolítica mais ou menos definida no horizonte de sentido de determinada sociedade" (BORGES, 2017, p.).
Stephane Ramos da Costa ressalta a mediação de intelectuais os quais denomina "patrícios negros" que, entre as últimas décadas o século XIX e primeira metade do século XX, projetaram e construíram espaços de educação para os filhos dos portuários e trabalhadores residentes em regiões de moradias de populações negras na cidade do Rio de Janeiro. Sua dissertação está inserida em um campo de estudo que reconhece os escravizados e seus descendentes libertos e nascidos livres como sujeitos históricos. Tendência que impõe um tipo de narrativa que humaniza homens negros e mulheres negras ao evidenciar tanto o seu protagonismo histórico como a continuidade e atualidade de suas lutas contra a opressão e o racismo.
A intelectualidade de seu principal personagem, José Cláudio do Nascimento, é atestada ao demonstrar que ele compreendia os fundamentais códigos sociais dos setores dominantes. Apesar de o seu projeto educacional ter estado à margem das políticas públicas e mesmo do apoio de uma "elite negra" com maior poder aquisitivo - como foi o caso da Escola da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos -, o patrício negro foi o organizador de ao menos cinco escolas espalhadas pelo Rio de Janeiro. O sentido da sociedade que ele vivia era extremamente excludente e ações contundentes voltadas para a educação do seu público alvo eram quase inexistentes. Assim sendo, não é difícil imaginá-lo dotado de momentos de motivação, percepção, interpretação, em constante diálogo com praticamente todos os campos das chamadas ciências humanas, mediando ideais e projetos políticos, funcionando, portanto, como mediador cultural em muitos aspectos.
Importa destacar, todavia, o papel da historiadora Stephane Ramos da Costa; sua escolha de objeto de pesquisa, as categorias de analise que priorizou; o sentido que imprimiu na sua narrativa, enfim, o esforço com o qual buscou "compreender o quadro geral das condições de produção político-sociais de ideias" de um dado contexto histórico, partindo de específicas experiências. Ao dissertar sobre tais temas e problemas, buscou projetá-los para além do tempo de sua ocorrência, do mundo daqueles personagens. Utiliza as ferramentas de produção de conhecimentos de sua área, objetivando uma compreensão racional que tornasse inteligível os sentidos das lutas daqueles indivíduos. Práticas que podem, sem dúvida alguma, ser definidas como de uma intelectual mediadora. Como argumentou Alex Fernandes Borges,
O historiador poderia ser muito bem caracterizado como um sujeito produtor de conhecimento e, ao mesmo tempo, um comunicador de ideais que, por estar incrustado na tessitura sociocultural na qual produz e se produz, é um ser cruzado por interesses, carências e sentidos que permeiam a produção e divulgação dos bens culturais, catalisando e difundindo, recebendo e emitindo mensagens, sendo emissor-receptor, influenciador e influenciado, sempre considerando a maneira como seus discursos são apropriados pelo público a que se destina e, por fim, reajustando suas emissões reconsiderando tanto os interesses, as carências e os projetos políticos já afetados pelo próprio discurso, ou discursos, já emitidos (2017, p.44).
Outros cientistas humanos e sociais, certamente, poderiam assim ser qualificados. Na sociedade ocidental contemporânea, personagens com posições de reconhecimento diferente daqueles tradicionalmente caracterizado por modelos explicativos deterministas são sim intelectuais mediadores que estabelecem forte diálogo entre o conhecimento produzido e aqueles homens e mulheres que se utilizam desse mesmo conhecimento para sua emancipação social. E isso tanto atuando diretamente na prática docente, como os sujeitos da pesquisa de Costa, quanto produzindo conhecimento para ser disseminado entre seus pares.
Fonte:
BORGES, Alex Fernandes. O HISTORIADOR COMO INTELECTUAL MEDIADOR DA CULTURA. In: Revista Eletrônica História em Refl exão, Dourados, MS, v. 11, n. 21, jul./dez. 2017.
file:///C:/Users/User7/AppData/Local/Temp/O_historiador_como_intelectual_mediador_da_cultura.pdf Acesso: 13/07/2020.
CASTRO GOMES, Ângela; HANSEN, Patrícia.Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ações políticas. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2016.
COSTA, Stephane Ramos da. Os patrícios negros": projetos de instrução e identidades negras no Brasil do século XX. In: Anais do 30º Seminário Nacional de História - ANPUH - 2019. https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1565803558_ARQUIVO__Patriciosnegros__projetosdeinstrucaoeidentidadesnegrasnoBrasildoseculoXX.
______________. PATRÍCIOS NEGROS: Experiências de educação popular no Rio de Janeiro (1887-1956). Dissertação, Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2020.
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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.