Que “cordialidades” o Mito da Democracia Racial legou às relações envolvendo alunas negras e alunos negros
Por Lucimar Felisberto dos Santos*
O "Mito da Democracia Racial" um conceito criado a partir de uma sistemática crítica aos pressupostos cunhados a partir de interpretações do livro Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal publicado por Gilberto Freyre, no anos 30, quais sejam: que no Brasil os povos brancos, indígenas e negros viviam em plena harmonia racial. Apesar de o autor não usar o termo "democracia racial" em sua obra, a perspectiva otimista com a qual descreveu o processo de miscigenação da sociedade brasileira levou à elaboração do conceito. Tanto a ideia de democracia racial quanto o próprio termo apareceram em alguns textos anteriores à obra de Freyre, mas a sistematização se deu a partir dela.
A cordialidade supostamente demonstrada pelos senhores brancos na relação com seus escravizadas/os e clientes negras/os narrada por Freyre responderia pela criação mitológica do bom senhor. Entretanto, há muito que as/os críticas/os dessa ideologia vêm ressaltando que o termo esconde tanto a brutalidade da escravidão no Brasil - tão brutal quanto em outros países - quanto o tratamento desigual dispensado pelo Estado brasileiro aos descendentes de africanos, escravizados ou não; que a ideia de uma mistura considerada "harmônica" entre as raças foi na verdade a institucionalização do racismo à moda Brasileira.
Ainda que em termos legal fossem garantidos às/aos negras/os brasileiras/os igualdade de direitos e oportunidade, no trato social, o branco e o embranquecimento seguiram sendo referências nos padrões econômicos e de beleza. O argumento estatal era que o que impedia os negros de ascender socialmente era o próprio negro. Segundo Verena Alberti e Amilcar Araújo Pereira, enfrentar o "mito da democracia racial" foi um dos grandes desafios do movimento negro brasileiro. Era preciso dissociar as heranças da experiência do cativeiro do atraso social que viviam a população negra brasileira. Ainda que reações violentas contra a situação de opressão não tenham chamado a atenção dos observadores, a necessidade de uma luta histórica contra as diversas assimetrias sócio-raciais evidencia a falibilidade dessa suposta igualdade entre brancos e negros. Para completar, os mesmos observadores poderiam argumentar sobre o fato de que a "Constituições brasileiras elaboradas a partir da abolição da escravidão nunca terem diferenciado os cidadãos por raça ou cor, ao contrário do que acontecia nos EUA e na África do Sul", diria Petrônio Domingues. Quando os negros não aproveitavam as oportunidades, concluía-se que eram incompetentes, incapazes e/ou inferiores.
Assim, o mito se transformou em ideologia oficial das relações raciais no Brasil, na avaliação de Petrônio Domingues. A ponto de a classe dominante se sentir eximida de qualquer responsabilidade em relação à situação de vulnerabilidade social vivida, destacadamente, pela população negra; de o Estado Brasileiro não ver a necessidade de se implementar políticas compensatórias em benefício dos ex-escravizados e de seus descendentes. As atrocidades, os danos e a expropriação decorrentes do regime escravista não causavam constrangimentos e nem interferia no conteúdo da ideologia. A tese sobre a natureza harmônica das partes da sociedade escravista que geraram o povo brasileiro apagava os conflitos interraciais, uma vez que seríamos todos miscigenados, essa seria a marca da nossa identidade nacional.
A ideia de que no Brasil não havia preconceito de cor fazia, ainda segundo Petrônio Domingues, "com que as desigualdades entre brancos e negros não fossem concebidas como decorrentes das injustiças raciais, mas entendidas como resultado das diferenças de ordem econômica e social entre as classes". Essa visão das diferenças de ordem sociais pode explicar os resultados de uma recente pesquisa que comprovou que professores têm maior predisposição em identificar emoções negativas, como raiva ou agressividade, em crianças negras do que em brancas. Isso se dá por que, além de incompetentes, incapazes e/ou inferiores, aos negros, o sentido da democracia racial no plano das idéias, imputaram outros estigmas assimilados pelo senso-comum.
Em termos considerado até mesmo como científico, um imaginário racial naturaliza a desigualdade que é reproduzida independentemente de atos materiais de discriminação. Nós negros vivenciávamos no cotidiano as piadas com a convivência com colegas que, em situações de conflito, recorrem a xingamento como "macaco" sem o menor constrangimento. Ainda que a ofensa tenha um componente racial explícito. Implícito é o elogio "Ela é negra, mas é muito inteligente". Quando se chama a atenção para o problema, o fato de circular nos mesmo espaços - sobretudo quando em tenra idade -, de não identificarem o racismo a ponto de proceder uma análise crítica de seus efeitos sociais aparecem em muitos argumentos dos racistas.
Mas somente a persistência de um racismo estrutural faz com que o Professor veja o aluno negro como agressivo e trate branco com simpatia. Ou seja, a desumanização provocada pelo racismo passa pela/o professor/a. Na matéria publicada, a coordenadora institucional da ONG Ação Educativa, Denise Carreira, argumenta que a diferença no tratamento é sim fruto do racismo. Nos espaços escolares, muitas crianças negras são perseguidas, humilhadas, segregadas, excluídas e estigmatizadas por colegas e, às vezes, até mesmo por professores.
O simples "Peça desculpas ao coleguinha!" ou qualquer outra intervenção cordial que minimize o comportamento da/o aluna/o agressor/a ancorada em uma ideia de relação racial harmoniosa pode colaborar para evasão e prejudicar o rendimento escolar de negros e negras. Para fazer da escola um ambiente antirracista, as/os pesquisadores sugerem aos professores primeiramente uma reflexão a respeito da complexidade da sociedade brasileira, o que deve incluir uma análise crítica do "Mito da Democracia Racial". Depois, "sobre seu pertencimento racial, sua identidade de gênero (como se sentem como mulheres e homens), sobre o lugar das pessoas negras e da cultura afro-brasileira em suas vidas e sobre como o racismo está presente na trajetória pessoal e profissional". Em tese, nenhum profissional da educação se pensa como racista. Na prática, todo profissional da educação deveria se converter em um antirracista.
Referências bibliográficas:
ALBERTI, Verena ; PEREIRA, Amilcar Araujo. Movimento negro e "democracia racial" no Brasil:entrevistas com lideranças do movimento negro. Rio de Janeiro : CPDOC, 2005. 15f.
DOMINGUES, Petrônio Domingues. O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E A MESTIÇAGEM NO BRASIL (1889-1930), IN: Revista Diálogos Latino americanos, número 010, 2005.
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*Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História (UFRJ) ; Coordenadora do Curso de Extensão e/ou especialização em produção de ferramentas para Educação das Relações Etnicorraciais (PPFERER) do Instituto Horus. Pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.