Reflexões sobre o trabalho indígena na sociedade brasileira
Por Ana Mello- Doutora em história política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Durante toda a história indígena desde o "descobrimento" do Brasil, duas questões são bem recorrentes e não resolvidas até a atualidade: terra e utilização de mão de obra. No período colonial a mão de obra indígena foi fundamental para o sucesso da exploração colonial. O trabalho de descimentos realizados pelos jesuítas, que transferiam grupos de indígenas de diversos lugares para perto dos centros coloniais tinham por objetivo a utilização da mão de obra indígena. Ao se converterem, os indígenas se tornavam aliados e garantiam o funcionamento da colônia fornecendo a mão de obra necessária para a manutenção do território e para o desenvolvimento econômico. Ao formarem aldeamentos o perto dos núcleos coloniais, os jesuítas buscavam impor sua crença, sua forma de trabalho, seus costumes e sujeitar o indígena a um novo modo de vida.
Segundo John Monteiro, "o sistema de missões apresentava-se como solução para o dilema entre o provisionamento de braços para a economia colonial e o ideal da liberdade dos índios"[1]. Muito além da questão religiosa, os aldeamentos jesuíticos eram espaços "civilizadores" que forneciam mão de obra para a colônia, servindo ao poder civil e transformando os indígenas em "súditos e fiéis". O projeto colonizador que se construiu interligava salvar almas ao cristianismo e usá-las como mão de obra para a sobrevivência colonial.
A junta das Missões e o Conselho ultramarino[2] julgavam os conflitos entre colonos e jesuítas, e emitiam alvarás conforme reclamações e pedidos locais. As contradições em muitos desses alvarás são exemplares para entender como o colonizador buscou resolver o conflito moral de utilização da mão de obra respeitando o livro arbítrio do indígena. Esses conselhos tinham o objetivo de apoiar as missões e a liberdade do índio, mas também implementavam mecanismos de controle para a sujeição desses povos à fé cristã. Apesar de a liberdade dos índios e seu direito originário às suas terras serem unanimidades nas cartas, alvarás com força de leis, decretos e carta régias, não há uma homogeneidade nem nas leis, nem na política indigenista colonial.
A disputa entre colonos e jesuítas pela mão de obra indígena só foi se acirrando conforme o aumento de produção da colônia. Por conta disso, os jesuítas foram expulsos em 1759 e foi criado o Diretório dos índios que ficou conhecido como Diretório Pombalino. Segundo Maria Regina Celestino, a política pombalina[3], visava principalmente à Amazônia, pois, além da maioria da população ser constituída por indígenas, a influência jesuítica era proporcional; e a mão de obra indígena era empregada em larga escala. Por isso, o diretório teria sido implementado primeiramente no Estado do Maranhão e Grão-Pará e depois para todo Brasil.
A ideia de civilizar, educar e moralizar os indígenas continuou em voga, porém a força de trabalho pareceu ganhar maior importância. O Diretório dos Índios foi precedido por duas leis: Lei da liberdade dos índios de 6 de junho 1755, e a Lei de 7 de junho de 1755. Esta última retirava a autoridade temporal dos missionários nas aldeias, determinado pelo Regimento das Missões, e passava aos Principais (lideranças indígenas reconhecidas pelo governo colonial. Tal lei de liberdade demorou dois anos para ser publicada.[4] Segundo alguns autores essa demora ocorreu devido à problemática na sua aplicação, pois implicaria em mudanças drásticas no cotidiano colonial. A liberdade sem mediadores comprometeria substancialmente a questão da mão de obra, pois, a visão do indígena como pouco "afeito ao trabalho" já era então bastante difundida. Ao ser publicada, foi delegada aos Juízes de órfãos a tutela dos que não estariam enquadrados no regime colonial.
Aspecto interessante é que, ao se delegar aos Principais o autogoverno, reconhecia-se a capacidade de negociação sem necessidade de intermediários, podendo entrar, inclusive, com ações na Junta das Missões, assim como todos os vassalos. Essa igualdade de direitos se tornou uma preocupação entre os colonos.[5]
Para o historiador Mauro Cezar Coelho, as chamadas leis de liberdade não traziam em seu texto instrumentos para a utilização da mão de obra indígena. Para ele, o Diretório dos índios seria uma resposta à pressão exercida pelos colonos para que estes tivessem algum controle sobre o trabalho indígena.[6] Assim, o diretório foi um instrumento jurídico mais completo e detalhado do que as leis que o precederam, retirando brechas para que houvesse uma homogeneização na colonização e para que atendesse aos interesses coloniais, instituindo a tutela diante da liberdade indígena sem desfavorecer nem ao Estado nem aos colonos. Segundo Mauro Cezar Coelho, a prática do Diretório demonstra "a dinâmica das forças sociais envolvidas em sua formulação e, mais do que isso, permitiu-lhe redimensionar a questão do protagonismo dos índios nesse processo".[7]
De acordo com o antropólogo Schuartz, a discriminação contra os indígenas sempre foi mais moderada do que com os negros, e isso se intensificou com o diretório pombalino. Segundo o autor, isso ocorre, pois nos anos iniciais da colonização, na ausência da população branca (principalmente mulheres), os indígenas e mestiços eram importantes tanto para defesa quanto como força de trabalho.[8]
Maria Regina Celestino destaca que muitas das orientações contidas no Diretório espelharam no Regimento das Missões, como a repartição do trabalho, os cuidados para com as fugas dos indígenas, a relação com as lideranças e a necessidade de descimentos. Logo, não era um projeto reformista e sim uma tentativa de fortalecer o Estado português e centralizar as decisões nas orientações do governo.
O uso da mão de obra indígena era regulamentada pela Câmara através do "Termode Educação e Instrução" em que o colono deveria educar, batizar e ao final da concessão pagar pelos serviços prestados. Inicia-se então, o que Patrícia Sampaio conceituou como "uma modalidade de tutela particular e individual".[9] Os contratos de trabalho seriam a forma de incorporação desses indígenas não aldeados. A orientação, como explicitado no trecho citado acima, condenava o uso de violência e a escravização indígena. Essa nova forma de interação foi importante na criação de populações mestiças.
De acordo com Mauro Coelho, essa nova legislação foi uma alternativa contra o trabalho nos aldeamentos e "o tornar-se 'ribeirinho', isto é, tornar-se infenso à autoridade colonial, livre da tutela dos diretores, foi, portanto, o objetivo de muitos índios que decidiram pela vida nas povoações".[10] Logo, foi uma brecha encontrada pelos indígenas para não realizarem trabalhos compulsórios.
Com o advento do Império e da República a utilização de mão de obra indígena era prioridade, porém com a idealização de incorporação das populações indígenas junto às populações rurais. Desta forma, "civilizar"seria o objetivo determinante do Estado neste processo, "transformando os nativos em mão de obra e assimilando-os à sociedade brasileira, impondo a língua, o vestuário e a religião do conquistador"[11]. No período republicano, foi criada a primeira agência estatal especializada em indígenas: Serviço de Proteção ao Índio (SPI). É através dessa instituição que lança-se a base de assimilação que se perpetua até os dias atuais.
A política indigenista, na década de 1980, prossegue-se com a política republicana de assimilação, objetivando mediar conflitos territoriais entre povos indígenas e a sociedade civil, vendo a integração desses povos como o ideal para a soberania estatalna manutenção de todo território nacional. Exemplo disso, além dos decretos demarcatórios de 1983 e 1987, temos o Decreto 88.985 de 10 de outubro de 1983, com base no Estatuto do Índio, que regulamenta sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas - que seriam exploradas pelos próprios "com exclusividade - o exercício das atividades de garimpagem, faiscação e cata"[12], e a comercialização orientada pela FUNAI, entretanto o decreto possui 6 artigos que regulamentam a exploração estatal e privada de mineração em terras indígenas, inclusive com a utilização de mão de obra indígena de acordo com "o grau de aculturação do silvícola", não distinguindo dos "demais trabalhadores", assegurando as "leis trabalhistas e previdência social"[13].
Observa-se, entretanto, que no texto da lei não há espaço nas instâncias decisórias e nem nos lucros da lavra de suas terras. De gestores da terra passam a trabalhadores assalariados, excluindo aqueles que por ventura se recusassem essas condições. Fica evidente a retomada de transformar os indígenas em trabalhadores rurais, assim como o Diretório Pombalino e o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) objetivavam.
Outro projeto que demonstra a busca da integração dos povos indígenas e a utilização de mão de obra foi o Projeto Calha Norte (PCN) iniciado em 1985, e retomado em 2003. Com objetivos claros de proteger as fronteiras nacionais e integração da região norte ao resto do país, este projeto previa uma série de medidas de desenvolvimento, como construções de hidrelétricas, expansão das malhas viárias, desenvolvimento urbano e empresarial, além da criação de núcleos das forças armadas. A questão indígena foi amplamente debatida pois, segundo o documento, incluía "46% da população indígena do Brasil".[14]
As terras indígenas, chamadas no projeto de "colônias indígenas", deveriam ser demarcadas em pequenas ilhas territoriais circundadas por florestas, "sendo considerada explicitamente inadequada a demarcação de terras indígenas enquanto áreas contínuas na faixa de fronteiras."[15] Segundo João Pacheco de Oliveira, a questão era o "paradoxo entre a existência de grandes riquezas e a impossibilidade legal de explorá-las"[16]. Logo o projeto Calha Norte seria uma forma de revisar as possibilidades de exploração mineral em terras indígenas e de assimilação, já que as terras seriam compartilhadas com não-indígenas.
Diante dos exemplos citados, pode-se entender que a utilização da mão de obra indígena é uma permanência na história do Brasil. Os conflitos advindos das recusas indígenas delegaram a esses a imagem de "preguiçosos", mas é inegável que sem o trabalho indígena não haveria como dar prosseguimento ao projeto colonial, imaginado e desenvolvido para ser implementado em terras americanas.
Esse conflito ocorre principalmente pelo modo de vida, trabalho, produção e utilização dos recursos naturais por parte das populações indígenas ser profundamente diferente do entendido pelo modelo europeu na colonização ou hoje no modelo capitalista. A imposição do estilo de trabalho não inerente aos indígenas, é uma maneira violenta de enquadrá-los dentro de um projeto assimilacionista que busca retirar desses povos seu modo de viver e apagamento de sua história.
Apesar de todos os projetos enfrentados pelas populações indígenas ao longo da história do Brasil, eles seguem resistindo, mantendo sua cultura e lutando por suas terras. E a medida do possível se adaptando às exigências impostas para sua sobrevivência. Garantir suas terras, através das demarcações feitas pelo Estado, é tarefa cada vez mais árdua e beligerante haja visto o avanço do agronegócio, grilagem de terras e exploração ilegal de madeira e mineração. Entretanto, é de extrema importância, pois, somente com a garantia de suas terras, esses povos poderão garantir sua cultura e o modo de viver a que têm direito.
[1]MONTEIRO, John Manuel. Os Guaranis e a história do Brasil meridional (séculos XVI-XVII). In: Carneiro da Cunha, Manuela (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992, p. 487.
[2]A junta das Missões foram criadas pela Carta Régia de 7 de março de 1681 em diversas capitanias do Brasil, que eram subordinadas "à que existia em Portugal" apud Souza e Mello. Marcia Eliane Alves de,"Fé e império as juntas das missões nas conquistas portuguesas". Manaus, Edua., 2007, p.22.
[3] Ele era irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal que de 1750 a 1757 foi primeiro-ministro do rei D. José I e implantou reformas de cunho iluministas.
[4] Em 28 de maio de 1757, pelo governador do Maranhão e Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
[5] SAMPAIO, Patrícia Melo. "Fronteiras da liberdade. Tutela indígena no Diretório Pombalino e na Carta Régia de 1798" In: Tutela : formação de Estado e tradições de gestão no Brasil / organização Antonio Carlos de Souza Lima. - 1. ed. - Rio de Janeiro : E-papers, 2014, p.31 - 52.
[6]COELHO, Mauro Cezar. "A construção de uma lei: O Diretório Dos Índios" Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 168 out./dez. 2007, p.7.
[7] COELHO, Mauro. "Do sertão para o mar - um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da colônia: o caso do diretório dos índios (1751-1798)" 2006, p.288.
[8] SCHUARTZ, Stuart. " BrazilianEthnogenesis: Mestiços, mamelucos, and, pardos." in: Gruzinski, Serge(org) "Le Nouveaux mondes" . Paris: èditions de L'ècoledesHautesètudes em SciencesSociales, 1996 , p.10.
[9] SAMPAIO, Patrícia, op. cit., 2014, p. 45.
[10] COELHO, Mauro, op. cit., p. 279.
[11] SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. Um grande Cerco de Paz. Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1995, p.56.
[12]Art. 2 decreto nº 88.985 de 10/10/1983.
[13] Art.8 decreto nº 88.985 de 10/10/1983.
[14] Projeto Calha norte disponível em: https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/programas-sociais/copy_of_programa-calha-norte.
[15]OLIVEIRA, João Pacheco. O nascimento do Brasil e outros ensaios: "pacificação", regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro, contracapa, 2016.
[16]OLIVEIRA,João Pacheco. A presença indígena na formação do Brasil. Secretaria de EducaçãoContinuada, Alfabetização e Diversidade (Secad). LACED/Museu Nacional. Brasília,DF: Coleção Educação Para Todos, 2006, p. 25